Sombras de Silêncio #359

Prestável, Girolme voluntariou-se de pronto para o trabalho e passou lá o resto da manhã. Dedicava muita atenção ao que ia escutando e desvendava o seu passado sempre que era inquirido. Terminou a manhã com uma dor excruciante nas costas, mas não se queixou. Depois de um almoço de açorda, Luís e Girolme guiaram o rebanho a montante do ribeiro dos Frades, com o «patrão», conforme lhe chamava Girolme, a indicar-lhe alguns truques do ofício. Entre os silêncios da aprendizagem, Girolme esforçava-se para aprender a assobiar.

Ao regressarem ao mosteiro, e já depois da ordenha, Luís aproveitou para iniciar as obras de melhoramento na casa onde Girolme passaria a viver. Luís levou ainda para lá uma panela de ferro fundido de três pés, assim como dois pratos e alguns talheres que eles já não usavam. Pregou algumas tábuas no armário e na mesa-de-cabeceira, reforçando também a janela do quarto. Luís incumbiu-o também de recolher alguma lenha para cozer as batatas e aquecer a casa, contando-lhe a fábula da cigarra e da formiga. Girolme ficou ainda mais impressionado com ele. Por sugestão de Mariana, Girolme poderia almoçar com eles, mas ficaria incumbido de preparar o jantar, conforme a habilidade e a fome permitissem. Em breve Girolme redescobriria as sandes de queijo e marmelada, que lhe trouxeram uma infindável série de lembranças de outros tempos. Por vezes, para desenjoar, também cozinhava batatas, que misturava com alguns legumes que as mulheres lhe iam ofertando, consoante o que não vendiam nas feiras de Mangualde e de Viseu.

No dia seguinte, Manel passou pelo mosteiro para avisá-lo que o pai não encontrara Alberto no hospital e voltou a convidá-lo para a festa de Nossa Senhora de Fátima. A celebração distribuía-se pela noite de sábado, com uma procissão de velas, e pelo dia de domingo, com afazeres porventura mais mundanos, de logros e excessos.

Quando tinha algum tempo livre, em especial depois do almoço, Girolme gostava de passear pelo mosteiro, sempre com o olhar aguçado e a consciência apurada, tentando descobrir o suposto tesouro. Notou que em algumas pedras estavam cravados símbolos e letras que faziam adivinhar segredos seculares. Depois de ultrapassar a vergonha e o medo, algum tempo após a sua chegada, Girolme perguntou a Luís qual era o motivo da existência desses símbolos, mas o patrão livrou-o de mitos e lendas, assegurando-lhe que estava relacionado com o encaixe das pedras durante a construção. As restantes pedras permaneciam laicas, desinteressadas, insuspeitas e mudas.

No sábado, Girolme passou algum tempo sozinho com o rebanho. Luís apenas o levou e trouxe, pelas margens do ribeiro. Jantaram mais cedo do que o habitual e recuperaram as velas que tinham sobrado do ano passado. Luís ofereceu a sua vela a Girolme e ficou de ir comprar uma no minimercado da aldeia. Quando chegaram à pequena capela, no coração de Vila Garcia, já o recinto estava repleto de devoção e intrigas. Entretanto, os habitantes já sabiam quem era Girolme, que ia sorrindo a nova alcunha.

Sombras de Silêncio #359

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