Vilarinho da Furna

Nem sempre é fácil explicar o fascínio que certos locais exercem sobre quem se deixa cativar. No caso de Vilarinho da Furna, o encanto foi imediato e os muitos motivos foram-se multiplicando pelos anos. Aproveitando que as águas da barragem homónima baixaram, regressei à antiga aldeia para fotografar e imiscuir-me naquele “mundo sagrado, onde a vida era um rito demorado e a morte um segundo nascimento”.

Junto à memória a recuperação de um texto que nasceu aquando da aventura Contos da Montanha (GC3YG32) e um documentário extraordinário dos últimos dias de Vilarinho:

Em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês [PNPG], no sopé da Serra Amarela, encontram-se as ruínas de Vilarinho da Furna (também conhecida como Vilarinho das Furnas, sobretudo após a construção da barragem), uma antiga aldeia comunitária, cujas leis e formas de vida ancestrais descendiam das próprias brumas geresianas, desde o período romano. Acabou por sucumbir ao corrupio da modernidade pela construção de uma barragem e a história tornou-se subaquática. Como a maior parte das aldeias serranas do norte de Portugal, Vilarinho da Furna era constituída por um aglomerado de casas graníticas, alinhadas umas pelas outras, formando ruelas sinuosas. As casas de habitação compunham-se geralmente de dois pisos sobrepostos e independentes: uma loja térrea, destinada aos gados e guarda de alfaias e produtos agrícolas, e um primeiro andar para habitação propriamente dita.

O povo de Vilarinho, além das leis vigentes no país, tinha também as suas leis internas, que eram escrupulosamente respeitadas e cumpridas. Para isso havia uma Junta, encabeçada por um Juiz (ou Zelador) e que era acompanhado por seis Deputados. Aos deputados, eleitos entre os habitantes, competia criar e votar as “leis” e ao juiz aplicá-las, sendo que em caso de empate o juiz tinha voto de especialidade. A eleição do juiz decorria, semestralmente, de uma lista, num sistema rotativo e consecutivo, de todos os homens casados da comunidade.

A Junta reunia todas as quintas-feiras, sendo que o juiz, ao raiar da aurora, tocava um corno de boi, convocando os seus ajudantes para a “união”. Ao findar o terceiro toque dirigia-se para o largo de Vilarinho, levando uma caixa onde se encontravam as Folhas da Lei. Também poderia haver uma “união” na parte da tarde, realizada junto aos campos, na ponte romana sobre o rio Homem. Era nestas assembleias que se determinavam os trabalhos a realizar e as “condenas” (sanções monetárias pelas ausências e outras condenações). Os assuntos principais incidiam sobre a construção e reparação dos caminhos, muros e pontes de serventia comum, a organização pastoril (vezeiras), organização dos trabalhos agrícolas (malhadas, desfolhadas, vindimas, roçadas e a distribuição da água das regas).

As atribuições do juiz eram tais que poderia, em caso muito grave, expulsar ou marginalizar alguém do sistema comunitário, deixando o mesmo de ser considerado “vizinho”, o que na prática significava que, futuramente, ninguém o poderia ajudar em nada, recebendo inclusive “condenas” se tal acontecesse. Ele era também o decisor de todos os crimes, com exceção para o homicídio, considerado competência dos tribunais.

Muito mais haveria para dizer sobre esta aldeia e este povo, assim como sobre as suas histórias, transformadas em contos da montanha pelo dealbar da modernidade. Porventura, Vilarinho, que se criou nas águas do rio Homem, sempre alheio a tudo o que existia ao seu redor e fechado num viver de experiências feito, já não pertenceria a este mundo; talvez já tivesse sido submerso pelas furnas do tempo ainda antes de a água lá ter chegado.

 

Vilarinho da Furna

Comentários