Os mortos não contam histórias. Os vivos resistem ao abandono através de bonecos que revelam lendas e enganam o tempo. No cimo do vale de memórias, as fragas adensam-se numa livraria geológica de suster a respiração. Lá no fundo, entre as sombras, o ribeiro galga a penedia melancólica por entre a vegetação exuberante. Eis o “Caminho onde o morto matou o vivo”.
A serra de São Macário é um berço de lendas que persistem pelos séculos. Ao redor do monte existem várias aldeias solitárias que vão sobrevivendo ao abandono. Uma das mais famosas é a Pena. Descendo a encosta, o olhar prende-se em fascínio no aglomerado de xisto que adormeceu em tempos imemoriais na cova profunda, onde o sol de inverno apenas espreita de soslaio. Tudo em redor parece ter ficado parado no tempo. É importante descer com cuidado e ter atenção à possível subida de outros veículos, já que a estrada é estreita. O acesso parece ter sido criado para provir apenas um sentido e um destino, não sei de ida ou de volta.
O café da aldeia é de paragem obrigatória. Nascido do xisto, as paredes estão repletas de palavras de quem o visitou e se encantou pelo lugar esquecido. Para quem tiver dúvidas sobre a envolvência selvagem do local, basta perguntar pelas víboras. Os encontros são muito raros, mas existem cobras venenosas por estas encostas escarpadas. Depois de uma visita à aldeia, deve seguir-se o cantar das águas do ribeiro da Pena e descer o vale pelo “Caminho onde o morto matou o vivo” até à aldeia de Covas do Rio. Este trilho mítico fura por um vale clivoso e acompanha a ribeira. Trata-se de um percurso linear com cerca de 6 km (ida e volta – ver e descarregar track).
O nome do percurso tem origem num episódio duplamente infeliz. Há décadas atrás, devido ao facto de a Pena não possuir cemitério, os habitantes tinham que levar os defuntos para Covas. Certo dia, e como o percurso inicial é muito íngreme, um homem escorregou e o caixão caiu-lhe em cima, matando-o. No lugar onde ocorreu este acidente existem alguns moinhos envolvidos por uma vegetação luxuriante e o ribeiro vai descendo em cascatas. A zona é bastante selvagem e escarpada, pelo que se desaconselham os desvios. O trilho apenas tem um sentido, seguindo a linha de água e da saudade. À medida que as encostas se vão tornando menos abruptas o percurso aproxima-se de Covas do Rio, mais uma típica aldeia de montanha, onde a estrada chegou já demasiado tarde.
Ao longo deste percurso linear foram deixados dezenas de bonecos misteriosos dos mais variados feitios. Uns mais pequenos, outros maiores, alguns mais escondidos e muitos à espreita de atenção. Miram-nos dos buracos das paredes, observam-nos das frechas das rochas, examinam-nos dos tapetes de musgo e controlam-nos a cada passo da nossa imaginação. A colocação dos bonecos teve origem em Covas do Rio, mas desconhecemos os propósitos. Quaisquer que tenham sido, os bonecos espalharam-se pelo caminho lendário, conferindo-lhe mistério, cor e vida.
À nossa terceira passagem pelo percurso desde que nos apercebemos deste “ritual”, resolvemos também deixar alguns bonecos. Seria interessante que mais surgissem no caminho onde o morto matou o vivo. Fica o desafio para os próximos que o venham a percorrer!