A ideia partiu do Vítor “Pirat@” Ribeiro. Enquanto degustávamos uma francesinha – daquelas que nos arregalam os olhos e nos reinventam espaço no estômago – lançou o desafio de fazer uma travessia entre o Alvão e o Marão. Fiquei de imediato interessado, mas a ida foi sendo adiada, tanto pela indisponibilidade dos interessados como pela imprevisibilidade meteorológica. O plano estava definido para uma travessia de dois dias, com pernoita pelo meio, desde o monte Farinha (Senhora da Graça), no Alvão, até às Antenas do Marão. Contudo, dada a escassez de datas disponíveis optámos por realizar o percurso em dois dias separados. O primeiro decorreu a 15 de outubro.
Na véspera de ir para a montanha sinto sempre um frenesim de expetativas. Como habitualmente tenho de me levantar cedo, estes dois aspetos acabam por redundar em poucas horas de sono. Ainda não eram 5h00 e eu já estava com a mão no telemóvel para cancelar o despertador. Nem foi necessário escutar o cantar da tecnologia para despertar os sentidos! Como o dia prometia ser longo, arrisquei tomar o meu café ocasional e fiz-me ao caminho. Subsiste em mim um estranho encanto em viajar de carro durante a noite; parece que o silêncio me aproxima do mundo.
Com duas paragens pelo meio para apanhar os companheiros da aventura (Vítor Ribeiro, Américo “Dragao88” Alves, José “Power_Red” Carneiro, Cidálio “ell comandante” Oliveira e Fernando Rei), chegámos à Senhora da Graça pouco passava das 8h00. O sol tinha nascido há pouco tempo e a vida acordava para mais um dia de trabalho. O monte Farinha criava uma sombra que tapava as terras de Basto.
Às 8h20 partimos para a grande caminhada. O início fez-se sem dificuldades, sempre a descer. Passámos por Vilar de Ferreiros e apanhámos a Levada do Piscaredo, que vai buscar água ao rio Cabril uns quilómetros mais à frente. Aqui tivemos o primeiro momento de espanto do dia; chegámos a um local povoado de árvores e os raios de sol furavam pela neblina deixando um rasto de encanto no ar. Passámos por algumas ribeiras e prosseguimos pela levada até rio Cabril, precisamente onde este se encontra com o rio Cabrão. Cruzámos as poldras e passámos para a outra margem, progredindo depois pela encosta até à capela que antecede o miradouro das Fisgas de Ermelo. Aproveitámos então para almoçar e continuámos para o miradouro, onde as máquinas fotográficas se deliciaram com a paisagem. É impressionante notar o poder da Natureza neste local; o vale abre-se abruptamente aos nossos pés, enquanto o rio Olo segue apressado pelas fisgas da penedia.
Contornámos o vale e visitámos as piocas de cima. Aqui, para se passar para a outra margem, é necessário dar um pequeno salto sobre uma passagem mais estreita do rio. Parece que, pelo menos em Ermelo, estas lagoas são conhecidas como pias. Respeite-se então a designação local. Surgiram depois as majestosas cascatas do rio Olo. Quanto mais se aproxima o olhar desta maravilha mais impressionante é a força com que a água se despenha no vazio. Descemos pela encosta e quase a chegarmos às pias de baixo tivemos o primeiro momento de corta-mato do dia. A vegetação foi engolindo os trilhos e torna-se difícil perceber qual é o melhor acesso. As silvas também não ajudam. Após uma paragem muito aprazível no rio, continuámos em direção a Ermelo. O percurso segue por campos abandonados e por caminhos onde é possível notar os refegos criados na rocha pelas antigas carroças puxadas por animais.
Chegados a Ermelo, aproveitámos uma paragem estratégica para consolar o estômago pelas agruras da caminhada. Passámos depois a aldeia típica e prosseguimos até ao vale em frente, onde nos esperava uma longa subida até ao topo do Alvão. Ao longe, as eólicas enganavam-nos com a promessa de alcançarmos o céu. Apesar de as encostas estarem um pouco despidas, a zona próxima do ribeiro mantém-se verdejante, tornando a caminhada mais interessante. Cruzámos a estrada e enfrentámos a última grande subida do dia. A encosta inclinada parecia uma escada rolante que nos puxava a tenacidade para baixo. O sol empoleirava-se em despedida no horizonte e o céu criava desenhos coloridos com as nuvens. Com as pernas pesarosas pela distância percorrida, vencemos o topo e iniciámos a descida para as minas da Farouca. A noite tinha entretanto caído no Alvão e nós tornámo-nos criaturas da escuridão em busca de um merecido descanso, que acabámos por encontrar no centro escutista que fica próximo de Mascoselo. A caminhada terminou às 20h20, cerca de 12 horas depois da partida. Para trás tinham ficado cerca de 30 quilómetros de grandes paisagens!
A segunda parte da aventura decorreu no dia 3 de novembro. Mais uma vez saí de casa durante a penumbra e com a promessa de um amanhecer pelo caminho. O encontro ficou marcado para as Antenas do Marão, de onde partimos para o início desta etapa, junto ao centro escutista. Aos amigos já mencionados, para esta caminhada juntou-se o Sérgio “sercla28” Oliveira. Desta vez, o tempo parecia querer complicar-nos a vida e a experiência. Para além da chuva frequente, estava um nevoeiro tal que não se via ponta do desafio. Ainda assim, não estávamos dispostos a desistir. Com as primeiras centenas de metros a chuva desanuviou um pouco e acelerámos o passo. À medida que íamos subindo a serra do Marão o nevoeiro ia criando brechas de visibilidade. Aos poucos, a paisagem emergia austera e fiel.
Com a chegada ao Alto de Espinho parecia que o final estava apenas à distância de um pequeno esforço. Contudo, sabíamos que nem sempre as caminhadas de montanha são o que parecem. Após alguns momentos de subida começámos a descer em direção ao fundo do vale, onde nos esperavam as minas abandonadas da Ramalhosa. Do alto, seguindo pelo caminho e através do túnel, vislumbrámos os vestígios deixados pela exploração mineira, que esventrou a terra em busca de sustento.
Seguiu-se uma longa subida pelas vertentes sulistas desta serra. Pelo meio ainda tivemos a oportunidade de nos cruzarmos com um enorme rebanho de cabras. Ocasionalmente, a meteorologia lembrava-nos que para lá do Marão mandam os que lá estão. O nevoeiro fechava-nos as vistas no imediato e a chuva testava a nossa resiliência. Baixávamos então o olhar e acelerávamos o passo, furando entre os pingos como quem dança com o destino. Aproximávamo-nos do final e pressentimos que nos esquiváramos aos imprevistos do percurso. Porém, logo de seguida descobrimos que um dos troços pensados apresentava problemas de acessibilidade. Assim, também pelo mau tempo, optámos por não seguir por um atalho de incertezas e acabámos por alongar a caminhada. As subidas tornaram-se então mais íngremes e desafiantes. O cansaço começou a fazer-se notar, mas o grupo superou as dificuldades com a esperança redobrada.
Com o sol a despedir-se num horizonte nublado aproximámo-nos do fim. A chegada ao vértice geodésico das Antenas do Marão marcou o fecho da aventura. Levantara-se entretanto um vento frio que nos arrefeceu a alma. Acossados pelo mau tempo e pelo cansaço, surgiu-nos então de surpresa um tecto e quatro paredes de conforto. Pareceu um verdadeiro milagre de Nossa Senhora da Serra! Conforme delineado desde o início, fomos então preparar a fantástica sopa da pedra. Foi o final perfeito para uma grande aventura, tão inesperado quão inolvidável! Para além das memórias, ficou o desafio de Sobrevivência (GC640AW) entre o Alvão e o Marão.
No geocaching existem por vezes relatos de falsas descobertas, registos imaginários e estatísticas enviesadas. Porém, é impossível falsear as vivências que nos marcam; aquilo que recebemos é absolutamente impagável e insubstituível, considerando as diferentes vertentes da aventura (preparação, concretização, imprevistos, dificuldades, superação e comemoração). Esta foi uma delas. Valeu por qualquer pódio. E, no fundo, é isto o geocaching!
Artigo publicado na GeoMagazine #18.