Ninguém é virtual

A saudação eletrónica cruzou o ar soturno e onírico. Um raio de luz entrava por um retângulo enviesado da persiana e desenhava um ponto difuso do outro lado do espelho. Desconfiado, Ninguém abriu o sobrolho e não percebeu de imediato que as obrigações diárias estavam a chamá-lo deste lado da vida. Indolente, Ninguém rodou sobre a preguiça e acertou a insatisfação no ecrã, silenciando a perturbação por cinco minutos de procrastinação. Como era habitual, foi durante esse tempo que percebeu quem era e onde estava. O segundo alarme convenceu-o do atraso eminente e Ninguém ergueu-se para a vida. De forma inconsciente, arrebanhou a sua extensão virtual e deambulou para a casa de banho. Sentado, abriu em curiosidade o Facebook para saber o que mudara na sua vida social durante a noite. Vinte e sete gostos, cinco partilhas e mais três amigos desconhecidos afagaram-lhe a vaidade numa garantia que é mais estimado do que Nunca.

Entusiasmado, Ninguém pediu mais cinco minutos emprestados ao mundo e distribuiu gostos como se fosse um ninja das artes sociais. O seu dedo polegar parecia ter sido feito à medida certa do ecrã para passar as publicações em relances impercetíveis. A sua personalidade fora moldada na versão beta deste admirável mundo novo e ele não se imaginava a viver noutra era. Existir por si e não partilhar a sua vida com o mundo era demasiado banal para merecer ser vivido. Ninguém morava sozinho. Sempre que a realidade lhe destapava a consciência para solidão, Ninguém gostava de se delongar pela longa lista dos amigos sociais. Orgulhoso, considera-se então mais famoso do que uma celebridade do tempo antes do tempo, quando ainda não existia a Internet.

Ao pequeno-almoço, entre quatro paredes de solitude, Ninguém voltou a pegar no telemóvel e regressou à sua vida virtual. A meio de uma torrada de nada, o seu olhar ficou preso na inquietação “Em que estás a pensar?”. O Facebook perguntava e o mundo precisava de saber. Pesquisou a página do seu autor de autoajuda preferido e roubou um cliché sobre a premência de esquecermos o passado e vivermos no presente. Depois de publicar a sentença, sorriu ao imaginar que iria ajudar algum amigo a ter um dia melhor. Quem sabe, poderia ter contribuído para que vários desconhecidos tivessem uma vida plena.

Na ida para o trabalho, Ninguém aproveitou para acompanhar as novidades do Twitter. Contudo, o trânsito acabou por fluir mais depressa do que os tweets e Ninguém teve de adiar as últimas visualizações. A manhã revelou-se mais atarefada do que o previsto, pelo que a sua vida virtual teve de ser adiada. Nos intervalos da atenção, sem saber se estava a ser estimado, procurado ou partilhado, Ninguém sentia-se a resvalar para o anonimato. Pior, o mundo poderia estar desatento ao melhor de si. No entanto, o almoço acabou por compensar. Uma ida ao Hamburguês valeu-lhe mais de duzentos gostos no Instagram e Ninguém ficou de barriga cheia.

Foi uma tarde bastante sobrecarregada. Ao café, em conversa com os colegas, Ninguém congratulou-se pela partilha prévia que poderia ter ajudado a encontrar uma menina que estava desaparecida após ter sido aliciada por um falso amigo do Facebook. Pouco depois, Ninguém juntou o seu gosto e sentimento a uma onda de solidariedade que se emocionava com um grupo de refugiados que sucumbira às portas da Europa. A abertura das fronteiras das desigualdades parecia estar à distância de uma tonelada de gostos. Atento, Ninguém aproveitou para relembrar o Facebook que não autorizava que as suas fotos e outros conteúdos fossem usados por Alguém. Durante o lanche, com um gosto cirúrgico, ajudou a salvar uma criança em África que não tinha água potável para beber. E quem salva uma vida salva o mundo inteiro!

Depois de mais uma viagem pelo Twitter, Ninguém chegou a casa e atirou-se para o sofá com uma sensação de dever virtual cumprido. Ali teria ficado até ao jantar a rememorar insignificâncias, não fosse a consciência social pesar-lhe. Não lhe apetecia correr, mas a partilha da atividade não se fazia no vazio. Cansado, mas orgulhoso, Ninguém regressou a casa com mais ideias para reinventar a sua vida. Passou de soslaio pelo jantar e mergulhou em perfis do Tinder à espera de encontrar um amor que se ajustasse ao seu algoritmo. Empolgado, resvalou para a cama e agradeceu ao destino ter nascido num tempo em que o mundo cabe na palma da mão e os laços se criam ao sentido do toque virtual.

Madrugada meia, Ninguém deu por si em letargia a percorrer as publicações do 9Gag. Depois de esgotar os sorrisos num cansaço febril, resolveu que estava na altura de desligar-se do mundo. Todavia, não resistiu a um último vislumbre do Facebook. Na primeira publicação leu:

“Numa civilização onde há máquinas que jogam xadrez e homens que não sabem ler, a quem é que o poeta deve dizer os seus versos?”

Curioso, Ninguém ainda fez um esforço para perceber a frase, mas desistiu à primeira inquietação, lamentando que o botão de desgosto ainda não tivesse sido implementado. Ninguém posou depois o telemóvel ao lado do sonho e, apagando a luz do candeeiro colocado em suporte sobre um livro, suspendeu a vida virtual por mais algum tempo.

Ninguém é virtual

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