As voltas do impossível

Por muitas voltas que dê, os atalhos da vontade continuam a levar-me para os caminhos da serra da Freita. E cada regresso é uma oportunidade para descobrir um novo trilho, revisitar um local ou reavivar uma memória. Desta vez, o motivo eram As Voltas do Impossível, a prova mais recente da Freita. O conceito deste trail tem inspiração na mítica Maratona de Barkley, considerada uma das mais peculiares e difíceis do mundo. Para participar nesta prova é necessário escrever uma carta de motivação e apenas são aceites 40 atletas por ano. Em mais de 30 anos, apenas 15 atletas conseguiram terminar. A própria inspiração para esta corrida é curiosa: a prova decorre numa zona em que existe uma penitenciária, de onde em 1986 fugiu um prisioneiro. O fugitivo correu pela floresta densa e montanhosa por 55 horas, sendo capturado a apenas 13 km da prisão. Sem recetor GPS ou telemóvel, a prova estende-se por mais de 160 km, em cinco voltas, e com um máximo de 60 horas. Os atletas têm de passar em pontos predefinidos para recolher uma página de um livro. A prova começa quando o diretor, sobre a linha de partida, acende um cigarro. Existem mais pormenores inusitados e desconcertantes nesta prova, mas a dificuldade é dolorosamente real, assim como a desmotivação constante que empurra os participantes para a desistência. 

Para participar n’As Voltas do Impossível, que teve a primeira edição em outubro de 2020, também é preciso escrever uma carta de motivação e, em caso de aceitação, recebe-se uma carta de condolências. A prova estende-se por mais de 100 km na difícil Freita, em cinco voltas e com limites horários. A chamada é feita ao som de uma corneta e a prova tem início quando se acende uma candeia a petróleo. Ao longo da mesma os participantes devem recolher guias de transporte em locais predefinidos. Em 2014 consegui terminar a minha primeira prova de trail, a exigente Ultra Trail Serra da Freita (UTSF), mas sabia que não estaria preparado para este novo desafio, cujo contexto deambula pelas serranias e histórias mineiras de Rio de Frades. Quem conseguisse terminar As Voltas do Impossível teria o nome inscrito numa laje de xisto que foi colocada no local da partida. Ninguém conseguiu. Amante da Freita, fiquei de imediato em pulgas  para fazer uma volta por lá e aproximar-me do impossível. O ideólogo do desafio e “pai do trail nacional”, José Moutinho, teve a amabilidade de me facultar o trilho, mas os constrangimentos da pandemia acabaram por adiar a visita para o final do ano.

Cheguei a Rio de Frades quando o sol de inverno ainda estava escondido pelas encostas altaneiras e uma neblina atrasava-se pelos vales. O termómetro marcava 1º C. Depois dos preparativos fui até à pedra de xisto da meta e iniciei o périplo. Subi pelo caminho rural e passei pela aldeia acolhedora, que ainda acordava para mais um dia de inverno serrano. Entrei depois no encalço do já conhecido PR8 – Rota do Ouro Negro, subindo a longa encosta que me haveria de levar ao planalto. No fundo dos vales envolventes subsistia uma neblina espalhada em farrapos de mar. Quando cheguei à crista da encosta reencontrei a fantástica paisagem da Pena Amarela. Há largos anos que não andava por ali, mas bastou um segundo para perceber que o fascínio se mantinha. Com um pouco mais de tempo teria descido pelo PR até ao rio e à zona das minas, mas optei por subir. Da última vez que ali tinha passado o percurso ainda tinha bastante vegetação. Entretanto, um incêndio e a limpeza para esta prova tornaram-no bastante acessível.

Ao terminar a primeira parte da subida cheguei a um planalto e o trilho prosseguiu depois com vistas deslumbrantes para os dois vales, em particular para a Pena Amarela. Mais acima, quando me aproximei da cascata que encima o vale, notei a existência de um trilho que descia para a zona da cascata e não consegui resistir a seguir no seu encalço. Recordei então o dia em que vi pela primeira vez o vale da Pena Amarela do topo do enorme rochedo que fica ao lado da cascata, nos idos de 2011. Na altura andava à procura do lugar certo para uma história (GC2Q49V) e foi o encontro perfeito. Não descansei enquanto não cheguei ao fundo da cascata e o local continua a ser dos meus preferidos nesta serra. Hoje, do outro lado do vale, tive a visão inteira por onde desci das duas vezes que lá fui. Lembro-me de pensar que se a amostra era tão boa, o resto do vale, até à ponte de Bouceguedim, deveria ser divinal. Engendrei então um plano para dois dias de exploração. Sabia que teria muitas dificuldades em descer pelo rio desde a cascata e optei por apanhar boleia na crista da encosta que desce ao lado do rochedo (trilho que, segundo sei, está agora a ser criado para a próxima edição da UTSF). Depois de chegar ao rio prossegui até ao encontro com as minas e o PR, subindo depois por um antigo caminho florestal. Da segunda vez subi desde a ponte de Bouceguedim e fui até às minas, regressando depois pelo PR e pela estrada. Da experiência recordo as inúmeras dificuldades de progressão; existem vários pontos sem retorno, em que a única saída aparente é o desconhecido. Porém, foram também dias de comunhão perfeita e solitária com a montanha, associada a uma certa ideia de possessão dos locais idílicos . Na minha escala de maluqueira, creio que esta aventura da Pena Amarela apenas fica atrás da ascensão à Fraga das Pastorinhas.

Voltando às Voltas. Desci quase até ao rio para contemplar a cascata e voltei a subir. Não sei se aquele trilho terá continuidade para a outra margem, mas sem estruturas de segurança imagino que será difícil. Ao chegar ao planalto descansei as vistas e acelerei o passo para recuperar o tempo. Acompanhando a estrada, mas quase sempre por antigos trilhos, desci para o rio Frades. Estranhei o acesso, que desconhecia, mas percebi depois que iria apanhar uma levada de água do outro lado da encosta. Como o rio tinha bastante água, para não molhar os pés ainda tive de dar um salto de fé. O início da levada é espetacular, com passagens suspensas sobre as cascatas/lagoas. Passei por Tebilhão de soslaio e apanhei o trilho para Cabreiros. Das outras vezes que ali tinha passado cruzei o rio Pequenino mais abaixo, mas a parte superior também é bastante interessante. As folhas caídas das árvores criam uma passadeira natural muito fotogénica, complementada com o som bucólico dos riachos.

Deixando Cabreiros para trás, investi na subida da Gralheira. A paisagem alterou-se bastante desde que saltitava pelas encostas escalvadas da Pena Amarela. Mais acima, as encostas enchem-se de giestas e o trilho vai afunilando as vistas. Com menos motivos de interesse, acelerei o passo pelo antigo estradão até às abandonadas minas das Chãs. Gostei de revisitar o local e continuei depois pelo planalto da Gralheira, cumprimentando os gigantes de vento que por lá perduram. No chão, o gelo dos últimos dias continua a vencer as horas de sol e foi por esta altura que começou a cair uma chuva miudinha e fria que me fez acelerar ainda mais o passo. O céu estava fechado num cinzento infinito.

Entrei depois no PR2 – Rota das Bétulas e espreitei o miradouro da ribeira Escura. À memória vieram as difíceis subidas desta besta rochosa, aberta entre os restos graníticos de uma escombreira vertiginosa. Na descida para o Candal apanhei vários caminhos de água, mas felizmente já tinha parado de chuviscar. Subsistem nas encostas envolventes as leiras esverdeadas, entretanto deixadas ao abandono. Passei pela aldeia em modo acelerado e iniciei a subida para o monte encimado por uma cruz. A partir da cruz, pelo planalto, andei por terrenos desconhecidos. Corri pelo trilho até encontrar o ponto de descida para o rio Frades. O terreno torna-se então mais irregular, com muitas pedras à espreita. Mais abaixo, encontrei os resquícios de alguns pontos de exploração mineira. Gostei bastante de encontrar aquela visão do vale e certamente regressarei. A passagem pelo local deu também para perceber e agradecer o excelente trabalho na abertura do trilho. Cheguei ao rio, junto à cascata da mina, e percebi que tinha mais uma prova pela frente: o caudal obrigava a descalçar. Acho que não sentia tanto frio desde as águas geladas do rio Cares. Passei a mina da galeria com o mesmo fascínio de sempre e desci depois a escadaria para a parte inferior da aldeia, junto ao rio. Para terminar, fui ainda espreitar as ruínas da lavaria. Para trás tinham ficado sete horas e 22 km de mais uma experiência fantástica! – (trilho).

Em relação à qualidade do percurso, basta relembrar a orografia abençoada destas serras e a arte antiga de criar trilhos nas suas encostas. Com a devida preparação, creio que se tivesse participado na prova conseguiria fazer a volta em metade do tempo. Porém, fico exausto só de pensar que teria de percorrer mais quatro voltas para concluir o desafio e registar o nome na pedra de xisto. Vivo o trail mais pela experiência de comunhão com a natureza, e gosto de o fazer de uma forma solitária, do que pela participação em provas. Todos os anos tenho vindo a fazer apenas uma prova numa serra diferente e gosto de correr mais contra os meus limites do que contra os outros. Assim, será provável que venha a inscrever-me numa próxima edição n’As Voltas do Impossível. Porém, gostaria de deixar aqui a minha singela homenagem ao conceito, ao mentor e aos criadores do trilho!

As voltas do impossível

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