A perceção do risco e os limites

A perceção dos riscos e os limites

Neste artigo irei divagar sobre desafios e limites. Faço-o numa perspetiva de reflexão pessoal e não com a ambição de distribuir conselhos, até porque talvez não seja a pessoa mais indicada para o fazer. Todos temos limites e mais cedo ou mais tarde acabaremos por enfrentar situações complicadas. É certo que este passatempo pode servir para espevitar esse encontro. Dependendo do tipo de geocaching que praticamos, inevitavelmente acabaremos por ser confrontados com situações para as quais não estamos preparados, tanto a nível físico como mental.

Antes de conhecer o geocaching, sempre que passava numa estrada e olhava para um local aparentemente inacessível que ficasse nas imediações, contentava-me por vê-lo. Nenhuma outra vontade se insurgia. Com o geocaching, à medida que nos vamos imiscuindo nos seus meandros, somos tentados e levados a passar as nossas barreiras do conforto. Aos poucos, o suor, os riscos e as feridas transformam-se em inevitabilidades, que podem inclusive tornar-se em estranhos desejos insuspeitos.

Fraga das PastorinhasCerto dia, ao passar pela Serra da Peneda, fiz uma paragem natural no Miradouro de Tibo para admirar a majestosa Fraga das Pastorinhas (GC2M30X), suspensa sobre um vale com cerca de 500 metros de profundidade. Quando dei por mim já estava enredado por vontades e nasceu então o desejo de alcançar o seu topo fazendo a subida desde o Rio Peneda. O encontro ficou marcado para o ano seguinte, numa viagem de propósito único. Infelizmente, a minha companhia acabou por desmarcar no último momento por indisponibilidade, pelo que passou a ser uma aventura solitária. Deveria ter cancelado a investida, mas a vontade foi mais forte. Quando entrei no Parque Nacional encontrei um nevoeiro sebastiânico, pelo que o plano passou a ser vislumbrar a paisagem e lamentar o infortúnio. Ao revisitar o miradouro não se vislumbrava qualquer ponta do desafio. Ainda assim, decidi descer até Tibo para ir procurar a Lagoa dos Druidas (GC2E5TY). Quando cheguei ao rio apercebi-me que o nevoeiro estava confinado à metade superior do vale. Assim, resolvi averiguar até onde conseguiria subir em segurança. Acabei por chegar ao topo, com algumas passagens mais técnicas pelo meio. Aos poucos, o nevoeiro foi-se também dissimulando na minha resiliência e acabou por desaparecer. As vistas ficaram libertas e tive então uma das melhores sensações de que tenho memória. Contudo, as dificuldades não terminaram com a ascensão. Descer revelou-se muito mais exigente e não demorei muito a ficar bastante cansado, com assinaláveis dificuldades de progressão. Ao refletir sobre aquele dia, sei que arrisquei demasiado e não o voltaria a fazer. Foi talvez a minha aventura de superação mais insana.

Uma das questões mais relevantes com a superação dos limites prende-se precisamente com a companhia, que nos pode ajudar a ultrapassar as dificuldades ou emprestar um pouco de clarividência na tomada de decisões. Recordo-me de estar a atravessar as Montanhas Nebulosas (GC3C7J6) com o joom e, ao subirmos para a Serra Amarela, já ao anoitecer, começou a trovejar. De imediato, ele referiu que deveríamos descer para ficarmos em segurança. Tínhamos planeado a travessia ao pormenor e a vontade de continuar era muita. Em todos os momentos de preparação jamais tinha considerado a desistência e aquelas palavras foram tão tonitruantes na minha consciência como os raios da trovoada! Acabámos por descer e ainda bem que o fizemos. A aventura continuou no dia seguinte, num grande esforço de superação da distância a percorrer. Aquela decisão foi um atalho para a segurança!

Serra da EstrelaNum outro episódio em que a natureza se virou contra a nossa vontade, estava a fazer a ascensão Into the Wild (GC3ER8Y) da Serra da Estrela com o Sphinx quando, ao chegarmos à Lagoa Comprida e já depois de termos suportado algumas horas de chuva, começou a nevar. A temperatura tinha baixado bastante e, ao parar, comecei a entrar em hipotermia. Mesmo sabendo que não estava em condições de continuar, dei por mim perdido em considerações que talvez ainda conseguisse andar mais um pouco, tal era a vontade de completar a experiência. Valeu-me o discernimento do Sphinx. Quando regressámos a Seia já estávamos a replanear a investida para o fim de semana seguinte. As oportunidades não se perdem, apenas se transfiguram.

Mas nem sempre temos uma boa companhia nos ajudar a decidir em situações mais complexas. Recordo-me de ter problemas por ter feito uma má avaliação das minhas condições físicas e da quantidade de água que levei aquando de um percurso pela Serra do Risco (GCH744). Acabei por terminar o dia com uma sede do tamanho da falésia e em grande esforço. Nas inúmeras paragens, em cada pedaço de sombra, comecei mesmo a ouvir murmúrios ilusórios; os zumbidos dos mosquitos pareciam-me vozes de pessoas que me poderiam ajudar. De facto, numa situação crítica, é muito fácil sermos enganados pela nossa mente.

Mudando de serra e de país, creio que a cache mais difícil que já encontrei foi a Despedida y Cierre (GC3PR09), situada no Pico Torrecerredo, o cume dos Picos de Europa. Curiosamente, a avaliação dificuldade/terreno fica-se pelos 2.5/4.5. Para chegar a este pico, que fica afastado das rotas turísticas, deve fazer-se um percurso de vários quilómetros (com algumas passagens mais técnicas pelo meio), mas a verdadeira dificuldade surge quando se chega à base do desafio. O pico ergue-se de forma abrupta a cerca de 250 metros da nossa vontade. Não é estreitamente necessário fazer escalada, mas a ascensão passa em locais de grande exposição e é fundamental ter algum domínio das técnicas. Pode ainda ser complicado perceber qual é o melhor acesso (numa perspetiva de se subir apenas para locais de onde se consegue sair). A meio da ascensão em solitário, fui surpreendido pelo nevoeiro, o que veio a complicar ainda mais a situação. Para além das dificuldades do terreno já referidas, já no cume, encontrar o micro recipiente em tanta pedra solta é um verdadeiro teste de paciência. Como seria de esperar nestas circunstâncias, a descida também não foi fácil, dado que se tem de enfrentar a vertigem de frente.

Pico Gilbo - Picos da EuropaO trail running é um dos desafios de superação mais marcantes que já vivenciei. Logo que fiquei a conhecer a prova Ultra Trail Serra da Freita fiquei fascinado e senti uma necessidade premente de fazer o percurso na sua globalidade. Duas semanas depois, na companhia do mafilll, já estava a fazer o percurso (GC3GVZB). Tínhamos a esperança de o conseguir terminar num dia, mas acabámos por atingir o nosso limite (físico e mental) após cerca de 45 quilómetros em 16 horas de caminhada. A experiência acabou por servir de aprendizagem e um ano depois consegui terminar a prova, com cerca de 70 quilómetros, em menos de 16 horas. Creio que o que acabou por fazer a diferença foi o facto de, pelo pouco treino prévio e pela perceção da dimensão do desafio, ter uma esperança muito reduzida de sucesso; assim, quando, numa fase avançada da prova, comecei a acreditar que conseguiria acabar, a parte mental suplantou a dor física. Nunca irei esquecer aquela sensação ao cruzar a meta depois de ter passado por tanta dificuldade. Foi, sem dúvida, um limite que muito prazer me deu superar. O facto de ter sido realizado durante uma prova oficial deu-me um conforto de segurança importante; se algo corresse terrivelmente mal, sabia que alguém me haveria de ajudar.

Apesar de gostar de montanhas, sempre tive alguma apreensão em praticar desportos com cordas. Por incrível ou ridículo que possa parecer, julgo até que sentia mais confiança em mim do que numa corda para vencer um desafio. Quando fiz a minha estreia no rapel estava numa vertigem de medo. Porém, o receio acabou por se diluir nos ensinamentos de quem me acompanhou e num aumento natural da confiança. Algum tempo depois estreei-me no canyoning, desafio que nunca pensei vencer por não saber nadar. As dúvidas iniciais foram ultrapassadas pelo conhecimento e entreajuda dos amigos que me acompanharam. Foi mais uma experiência incrível de superação!

E assim termina esta viagem de reflexão pessoal sobre algumas situações de redescoberta e aprendizagem, tanto a nível da perceção do risco de algumas aventuras, como na superação dos limites associados.

Serra do Marão

Artigo publicado na GeoMagazine #17.


 

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