Ultra Trail Serra da Freita 2014

UTSF

Quando, no ano passado, fiquei a conhecer esta prova, soube de imediato que teria de a experimentar. A ideia de unir, num único desafio, todos aqueles percursos é, no mínimo, extraordinária. Ter a coragem e a vontade de a operacionalizar é fantástico! No dia anterior, como tinha de acordar muito cedo para fazer a viagem até ao Merujal, a tempo de levantar o dorsal, e sobretudo porque o frenesim e as expectativas eram muitas, acabei por não dormir nada e fui de direta para a prova.

A odisseia iniciou-se por volta das 5h30. Os primeiros quilómetros fizeram-se muito bem, num ritmo calmo, para não inviabilizar o que estava para vir. Na descida do Trilho do Carteiro as pernas experimentaram pela primeira vez a irregularidade do terreno. Como sabia que iria ter problemas com o joelho esquerdo, o pé direito ia sempre na frente, a apanhar as pancadas sucessivas. Seguiu-se a parte dentro do Rio Paivô. Por esta altura, o nevoeiro já tinha dado lugar à chuva, e o percurso parecia uma pista de patinagem ultra-artística. Os desafios eram superados ora por progressão dentro de água, ora por escalada, ora com a ajuda de cordas estrategicamente colocadas, ora com trocas de margens nas lagoas através de troncos. Com alguma agilidade e uma boa dose de doidice, aproveitei esta parte de progressão de grupo mais lenta para ganhar algum tempo, que sabia que iria ser importante mais adiante.

Depois de um abastecimento em Covelo do Paivô, fomos pela Senda até Regoufe e daí para Drave. Foi neste percurso que apareceram as dores no joelho esquerdo. Como iniciante nestas coisas, nem imaginava que o calçado poderia variar com o tipo de passada. Iniciei os treinos há 3 meses; neste último mês, à medida que aumentava a distância, apareceu-me uma dor e apenas na última semana percebi o que estava a fazer de errado. Recordo agora um episódio quando, numa noite de um verão passado, comprei uns chinelos a um senhor marroquino e, como eu achava que os chinelos não me assentavam bem, tentei explicar-lhe que os mesmos deveriam ter um problema qualquer. Ele, em 2 segundos, diagnosticou-me: “Tu tens os pés tortos!”. E tinha razão. Ele apenas não conhecia o nome técnico: ao que parece a minha passada é supinada. Diga-se, de passagem, que o nome é mais pomposo que “pé torto”.

Covelo de PaivôPosto isto, entre muitas dúvidas, no dia anterior à prova lá me decidi a ir comprar umas sapatilhas novas para estrear por lá. Ressenti-me naturalmente do mau treino e na corrida até à Aldeia Mágica apareceu-me ainda mais uma dor, no mesmo joelho, que me ficou desde a travessia do PNPG (Montanhas Nebulosas). Portanto, depois de Drave, ainda antes do meio da prova e sobretudo dos grandes desafios, o cenário não era nada bom. Foi o meu primeiro momento de desânimo e frustração.

Desci pela Ribeira de Drave e depois pelo Rio Paivô. Após uma subida pela margem direita, nova descida ao rio e enfrentei de seguida a longa subida do Trilho dos Aztecas. Como o joelho respondia muito melhor às subidas do que às descidas, e as pernas ainda estavam boas, foi sempre em passo acelerado. Depois do Trilho Inca e de mais um abastecimento, seguiu-se A Besta, mais uma subida vertiginosa. Iniciei com um colega e seguimos num ritmo forte, sem paragens e com algumas ultrapassagens pelo caminho, quase sempre a gatinhar, pelas pedras escorregadias, ribeiro acima. Talvez por ter sido enfrentada com uma dose insana de motivação, acabou por ser mais fácil do que pensava ou temia. Após poucos quilómetros no topo do planalto, seguiu-se mais um momento que eu saberia de antemão de seria terrível: a descida para Manhouce, saltando de rochedo em rochedo. Mais uma vez a perna direita levou com todo o impacto. Em algumas rochas, mais longas e inclinadas, foi mesmo de sku. Por esta altura apareceu-me mais uma dor, no tornozelo do pé esquerdo, que me acompanhou até ao final.

Cada chegada a um abastecimento era uma pequena vitória que me aproximava da meta. Em Manhouce, tendo em conta o tempo que levava, fiquei com a certeza que seria suficiente para acabar. Tal certeza acabaria abalada mais adiante, à medida que o joelho esquerdo ficava pior e sobretudo ao escutar um colega que dizia que a maioria das desistências acontecia nos últimos quilómetros, nomeadamente ao chegar-se ao fatídico quilómetro 65.

No percurso, seguiu-se nova descida ao rio, desta vez o Teixeira, e mais alguns obstáculos para contornar. A dado momento o trilho começou a subir pela margem direita, afastando-se bastante do rio. Sabia que a continuação do percurso seria por ali e pensei, como já estava a mais do meio da encosta, que já não voltaria ao rio. Contudo, a dado momento, para além de descer, o trilho começou a andar para “trás”. Este foi o segundo momento de desespero anímico. Foi difícil arranjar explicações à vontade para justificar o facto de termos de perder alguns 200 metros em altitude, num terreno muito inclinado, para depois os termos de ganhar logo de seguida. Então, os últimos 50 metros foram mesmo terríveis, com rapeis sucessivos, com a ajuda de cordas, num terreno muito inseguro e enlameado. Chegado ao rio, junto à cascata maior do Teixeira, lá voltei a subir tudo outra vez. Nesta parte ainda pensei que tivesse que passar para a outra margem e apanhar uma linha de água cavada na encosta escarpada que segue até à Quinta de São Francisco. Mas não, foi sempre a subir, passando por incontáveis leiras, muro atrás de muro.

AradaChegado lá em cima, nova descida, para mal do meu joelho. Com muitas dificuldades lá cheguei à aldeia abandonada das Porqueiras, refresquei-me na água do ribeiro, e ganhei algum ânimo. Pela frente jazia uma longa, longa, longa subida. A passagem por mais um abastecimento, na Aldeia da Lomba, deu-me a força que faltava para o trilho da Vereda do Pastor. Porém, as forças esgotaram a meio e tive o terceiro momento de desespero anímico. A subida interminável, o sol que se escondeu atrás da encosta e um vento que fustigava pela frente foram terríveis, congeminando para a minha desistência. Contudo, superei-me e, lá em cima, depois de uma parte plana, ao chegar à aldeia da Castanheira, vindo não sei de onde, ganhei um ânimo indescritível. Faltavam apenas 5 quilómetros e floresceu em mim a certeza de que já nada me faria desistir.

Seguiu-se o difícil trilho Nas Escarpas da Mizarela; durante a descida atirava a perna direita para a frente e agarrava-me como podia às rochas e à vegetação. A dado momento, porém, ganhei algum juízo ao aperceber-me que uma queda ali poderia inviabilizar a minha conquista final. Depois de passar a ponte aconteceu algo de mágico: as forças reapareceram e fiz a subida num instante, em modo de tração total. De todas as vezes que fiz o percurso das Escarpas da Mizarela, este foi sem dúvida aquele em que demorei menos tempo. Muito menos. Depois de passar pelo miradouro, fui variando entre corrida e caminhada de passo acelerado. Nos últimos 500 metros tive de correr, nem poderia ser de outra maneira. É impossível expressar por palavras o que se sente naquele momento, em que, depois de tanto sofrimento, se alcança o fim. Fica-se apenas com um sorriso eterno! Em relação ao menos importante, os números, fiquei na posição #117 da geral, com um tempo de prova de 15:47:19.

UTSF_1Esta foi sem dúvida uma estreia memorável numa prova de ultra trail. E tinha de ser nestas Montanhas Mágicas. Nunca na minha vida estive sujeito a tantas dificuldades e a tanto sofrimento físico e mental. Também por isso a sensação de superação é inigualável. Existe algo de eminentemente poético e sentir o corpo a ceder e ainda assim continuar. Depois de terminar, apenas queria tirar a foto da praxe e voltar para casa. Segundo a Ana Valente, durante a noite, fartei-me de queixar e gemer. Sinceramente não me lembro. Possivelmente, para além de não encontrar posição para dormir, acho que era sobretudo a minha mente a queixar-se do sofrimento, imaginando-se ainda pelos trilhos da Serra da Freita.

Sem perceber como ou porquê, vindo não sei de onde, a meio do percurso zuniu-me aos ouvidos o refrão da música “We’re In This Together”, dos Simply Red. Nunca mais me abandonou ao longo da prova e, sozinho ou acompanhado, lá fui trauteando aquelas palavras mágicas, quilómetro após quilómetro, até ao final. Acho que acabou por acrescentar uma boa dose de motivação para o desafio a vencer.

Por incrível que pareça, a dificuldade maior desta prova não está nos cerca de 70 quilómetros ou nos mais de 4000 metros de subida acumulada, mas sim no facto de ser muito, muito, muito técnica, o que obriga a uma entrega física e mental em cada momento. Na verdade, a distância e a altimetria estão longe de corresponder à dificuldade que encontra no terreno. É também isso que torna esta prova única. Sabendo que a parte física é terrível, o que acaba por fazer a diferença é sobretudo a parte mental. Uma palavra final para o espírito fantástico dos participantes e da organização, cuja ajuda e motivação ao longo do percurso são fundamentais! Parabéns a todos e obrigado por esta vivência extraordinária e absolutamente inesquecível!


 

Ultra Trail Serra da Freita 2014

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