A generosidade do Nandini serviu de mote a este desafio. Para o seu aniversário, no dia 17 de setembro de 2011, decidiu-se por algo diferente e ofereceu-nos a linha do Tua. A inversão do conceito festivo pode parecer estranha e uma linha ferroviária não é propriamente algo que se possa ter por casa. Afinal, era “apenas” uma caminhada, entre os carris e as pernas mais ou menos “enferrujadas”.
Depois de no dia anterior ter exibido o premiado documentário Pare, Escute e Olhe, de Jorge Pelicano, que aborda as vicissitudes da interioridade face ao corrupio do progresso, sobre a mesma linha que iríamos percorrer, a manhã de sábado iniciou-se com uma viagem pelo “reino maravilhoso” do Douro. Vindos de vários locais, talvez chamados pelo canto das vindimas, o primeiro ponto de encontro foi na Estação da Foz do Tua. Dali zarpámos no táxi do sr. Viriato, a quem agradecemos a simpatia e a boleia. As curvas e as contracurvas sucediam-se e o “é já ali” do condutor pareceu-nos uma miragem de vontades.
Na desejada paragem, e depois de nos terem confundido como mais uma equipa para a vindima, descemos até à Estação da Brunheda para iniciarmos a caminhada. Após alguns caminhantes terem suscitado um rasgo de dúvidas sobre a direcção a seguir, tempo então para os geocachers da comitiva darem sinal de si. Com os GPSr em riste e a dica em comunhão, a primeira cache surgiu de uma forma natural. Pudera, estavam ali reunidos muitos anos de experiência na procura de tupperwares! A descoberta despertou o interesse de dois caminhantes muggles, que entretanto deixaram de o ser. Podemos dizer que foi um bom começo: o Fernando Rei e a Lusitana Paixão apadrinharam a iniciação, o pbrandao levou as alianças e os Valente Cruz ficaram como damas de honor; coube ao Nandini conduzir a celebração. Seguiram-se então alguns quilómetros de sugestões sobre o nome adequado para estes novos geocachers e o tempo confirmará a sua escolha, mas pensamos o nick mais votado se adequa por ser uma boa derivação do nome de um deles, Gonçalo, augurando mais animação para os eventos a que, eventualmente, forem. A primeira inquietação do mais recente geocacher também foi curiosa: “E existem estatísticas?”. Não há escapatória possível, tudo é número.
A linha jazia então à nossa frente, como um enorme animal moribundo, contorcendo-se pelas vertentes acidentadas das encostas, clamando por atenção face ao abandono imerecido, contando histórias de outras viagens e desenhando a sua importância em tempos idos, numa paisagem agreste mas bela.
À medida que as passadas se adequavam às traves da linha, a conversa ia variando entre geocaching e mais geocaching, numa partilha de experiências, acompanhando o curso do rio, enquanto o cenário ia desfiando motivos de contemplação.
Chegámos então a um primeiro apeadeiro. A visão da paisagem envolvente, sem qualquer tipo de vestígios do homem, levantou então algumas dúvidas sobre a linha ferroviária. Uma estação no meio de nada, num tempo sem tempo, indiciava que a aldeia mais próxima ainda ficava longe e percebemos as dificuldades que as pessoas teriam em chegar até ali, mormente se trouxessem muita bagagem. O progresso parece revezar-se em duas faces: por um lado vieram as estradas e por outro foi-se a sustentabilidade da linha, para prejuízo de alguns e desinteresse da maioria.
Depois da curva, seguiu-se uma primeira descida ao rio para gáudio do corpo, que já começava a aborrecer-se com o calor. A pequena paragem serviu para retemperar forças, enquanto os marcos de distância da linha iam-nos lembrando do que faltava percorrer.
Para os geocachers mais recentes, as paragens iam servindo para aguçar o instinto de descoberta, sempre com a devida orientação da experiência.
As traves sucederam-se em catadupa e quando demos conta de nós já estávamos de novo no rio. O calçado saltou de uma forma tão natural e posemos os pés de molho nas águas. Ao longe, deveriam ver-se ondas de calor e cansaço, entrelaçados com uma visão rude das encostas escarpadas, enquanto outros deixavam-se levar pela corrente do Tua, desejando talvez alcançar a sua foz.
Levantámo-nos para o primeiro túnel, fresco como uma alma lavada pela Natureza, e outros se sucederam, alternando com algumas pontes de engenharia considerável, onde aproveitámos para testar vertigens e outros velhos medos.
Depois de uma milestone do Rei, avistámos o futuro. As máquinas lavraram e esburacaram as encostas, preparando-se já para cravar os ferros na terra. O cimento também começa a pintalgar a paisagem com o seu cinza-triste, prometendo “mundos e fundos” de uma energia que, dizem, vamos precisar. Às ameaças de “tiros e bombas” de uma placa informativa colocada na linha, e depois de um telefonema de segurança, decidimos arriscar a passagem, já que não havia actividade aparente nas obras da barragem.
A última ponte trouxe a promessa que o fim da caminhada era já depois da curva e os pés alegraram-se, apesar de a gravilha ter feito ainda alguns estragos. A satisfação, contudo, era muita, pelo desafio superado, numa caminhada ao longo de cerca de 22 quilómetros de grandes momentos. O tempo parece esfumar-se entre o ruído das máquinas e esta travessia, de paisagens e caches, tem os dias contados, tendo sido portanto uma excelente oportunidade.
No final, apesar do cansaço natural, pareceu que não tínhamos sido nós a caminhar; a linha é que se moveu, puxando-nos para a frente e para trás, levando-nos pelo tempo e saltitando entre tudo o que foi, tudo o que é e tudo o que será, como se fosse uma criança irrequieta à espera de um futuro. Contou-nos histórias sobre os sorrisos dos primeiros viajantes, a inquietação das águas que anseiam por subir o seu nível e, por fim, mostrou-nos, lá em baixo, um pneu encravado nas rochas do rio, como se temesse a inquietude destes tempos e de outros que ainda estão para vir.
Seguiu-se um jantar regado pela excelente companhia, num restaurante com vista para o Douro. A banda sonora variou com a boa disposição, mas a dado momento foi quase inevitável perguntar: “Mas quem será, mas quem será, o pai da criança?”. O Rei que o diga.
Quanto ao resto, nomeadamente sobre o plano dos resistentes em passar a noite num barco, com possibilidade de o resgatar e dar uma volta no rio, nada mais sabemos mas adivinhamos uma noite de bons momentos… nos sonhos.
Os nossos parabéns ao aniversariante, que insistiu em trazer uma recordação da linha, condizente com o seu número de primaveras, e o nosso bem-haja pelo convite e pela fantástica companhia.
Valente Cruz, com Lusitana Paixão, Fernando Rei, pbrandao, Nandini e muitos outros, cujos nomes se escondem por detrás dos sorrisos de um dia bem passado.