A inquietude do tempo contra o mundo

A inquietude do tempo contra o mundo

As palavras tropeçaram de súbito e ficaram sem saber o que contar, impacientes, à espera que um pensamento as fizesse perdurar. As lembranças poderiam ajudar mas, teimosamente, insisti em não perguntar ao passado quantos anos já tinham decorrido desde que tivera o acidente. Não o fiz por temer que a memória me atraiçoasse mas porque já não conseguia imaginar a vida sem uma mão incapaz e não queria que algum sorriso fortuito me contrariasse a certeza de uma vida incompleta. Fechei depois o pequeno caderno escarlate, onde há muito tempo escrevinhava as linhas sinuosas dos meus dias, discorrendo verdades, lembrando sonhos ou inventando vivências. Pousei também a caneta e deixei que ela adormecesse entre a solitude do meu silêncio. Ao lado repousava uma velha máquina de escrever. Arrebanhei uma folha em branco, inseria-a na máquina e deixei que o meu olhar se perdesse entre o seu vazio alvo. Tentei orientar as ideias para Viriato e para a estória que lhe devia mas fui rodeado por uma montanha de incertezas. Aos poucos, a inércia acabou por vencer-me e empurrei a máquina, enquanto a mente deslizava por um desfiladeiro bifurcado, entre o viver e o imaginar.

Cansado e absorto, fisguei demoradamente os ponteiros do relógio que jazia na parede, enquanto esperava pelo chá habitual. Senti-me agrilhoado no meu mundo-sala, com as paredes pintadas de indiferença, para onde tinha sido escorraçado pelas intermitências da vida. Coloquei depois as mãos sobre a mesa e voltei-as. Pareceram-me uma dicotomia doentia entre o bem e o mal. Uma era minguada, imperfeita e inútil, à direita do meu azar; a outra, à esquerda de Deus, era a melhor parte de mim. Senti uma ligeira tentação de me queixar ao vazio pelos sucessivos infortúnios mas acabei por desistir. Tentei depois perceber como é que o passado, o presente e o futuro se podiam juntar naquela mão disforme mas perdi-me entre as dúvidas da memória. Senti então uma dor lancinante na cabeça.

O mundo, despreocupado, seguia a cadência do tempo, embrulhando-se na forma de vidas atarefadas. Fui fechando os olhos lentamente até ficar com uma perspetiva semicerrada da rua. Pareceu-me então que, lá em baixo, todas as ações começaram a precipitar-se, numa fugacidade crescente, como se estivesse a ver um filme do princípio do século passado. Imaginei-me a cair para um abismo desconhecido e, assustado, abri de súbito os olhos, dando dois passos para trás. Tombei o pensamento para o passado e acabei por fazê-lo descair para a certeza que vivia sem qualquer rumo ou sentido. Fechei o punho assertivo e deixei descair a outra mão. Apesar de ainda não saber o que iria fazer, apeteceu-me não ficar à espera do chá, à espera da morte.”

in O tempo inquieto


A inquietude do tempo contra o mundo

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