Um sonho de liberdade

Planície

“As montanhas já tinham ficado para trás. Ao longe, as linhas delineavam uma estranha saudade, entre as indefinições do tempo. À nossa frente, a planície distribuía-se pelo horizonte com uma tonalidade verde e castanha, com as expectativas a variarem entre a desconfiança e a esperança.

Atrás de nós seguiam muitos homens e mulheres do clã, sendo que, sem contar com as crianças, os idosos ou incapacitados, poucos membros de cada família tinham ficado no castro. Por último seguiam os que carregavam os víveres. Antes da partida tínhamos juntado pequenas pedras brancas, uma por cada pessoa que seguiu viagem para a assembleia. O saco, meio tamanho do estômago de um borrego, tinha ficado à entrada do castro, à espera que cada pessoa do grupo, no regresso, levantasse a sua pedra.

Ao longe, as tonalidades vermelhas do acampamento romano misturavam-se com o azul que revestia o céu. Havia muitas tendas espalhadas pelo local, que ficava numa planície à beira do rio, defendido à retaguarda por pequenas elevações que seguiam a montante. Notava-se a existência de inúmeros grupos de soldados que deambulavam entre os preparativos da receção. As bandeiras, cujos mastros estavam bem marcados na terra e um pouco por todo o lado, como se fosse um mapa de intenções, esvoaçam pelo ar e acompanhavam as estórias que a brisa ia contando. A azáfama levantou-se entretanto, criando uma poeira de ilusões.

As amizades e as desconfianças misturaram-se à medida que os diferentes clãs se foram juntando no caminho. Aos poucos, a planície ia ficando cada vez mais repleta de gente. Éramos como figuras inquietas e medrosas à procura da nossa história. Ainda que a mensagem de Galba salientasse que a assembleia deveria assentar na ausência total de armas, todos trazíamos as adagas e os escudos. A inexistência de belicismo, num período em que mesmo as paredes do tempo pareciam forjadas pela guerra, era uma utopia demasiado pueril para ser encarada de uma forma séria e consciente. A Lusitânia era uma enorme manta de retalhos à espera de um líder consensual e cada clã ia preparado para se debater, até próximo da inexistência, pelos seus direitos.

À medida que nos aproximávamos íamos encontrando variadíssimas tendas improvisadas de clãs que ali tinham chegado mais cedo, porventura confiando que a antecedência lhes daria qualquer primazia sobre o retalho. As pessoas deambulavam taciturnas e apreensivas, desconfiando de si e dos outros. A brisa soprava suspeitas e o horizonte redesenhava dúvidas. Naquela altura senti o peso das palavras que o meu pai me confiara no dia em que me tinha tornado homem, sobre o facto de um chefe viver por si e por todos que estão abrigados na sua soberania.

Estava já o sol bem erguido no ar quando uma trombeta fez soar a ideia que a assembleia estaria para começar. Assim o explicou o intérprete que acompanhava o nosso grupo. Cada um na sua vez foi deixando as armas no mesmo montículo, seguindo depois a corrente de pessoas que confluía na direção da entrada da paliçada. Tínhamos os rostos erguidos pelo orgulho da resistência e da avareza. Entre os receios e as expectativas, comecei a recordar os nomes, os rostos e os feitos de alguns amigos que já tinham partido, entre o ferro e o sangue, para que nós pudéssemos por fim cobrar dos romanos o direito de viver nas terras que os nossos antepassados haviam conquistado.”

in O tempo inquieto.

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