Nem sempre a magia está nos olhos de quem vê; existem locais que são mágicos por si e não dependem de perspetivas ou ambiguidades. As encostas do rio Douro encerram uma magia quase inefável e esta é uma viagem pelo reino maravilhoso. É encantador deambular esquecido do mundo pelas encostas engrandecidas do Douro, onde a paisagem foi transformada pela vontade indomável do Homem. Um mundo de acidentes naturais vergados por instintos primevos ao longo de infindas gerações. A dureza da vida enraizada nas unhas das suas gentes e concretizada em paisagens domesticadas pela arte.
Nem sempre é fácil definir o que representa a identidade portuguesa. No Douro, essa definição torna-se imediata e intuitiva. Não precisamos de a tentar explicar ou compreender; apenas basta abrir os olhos e contemplar esta essência secular que nos vai moldando a alma, mesmo que nem sempre o saibamos merecer.
Esta viagem começa na Régua e segue a montante da vida. As pontes antigas (GC3BHRR) que ligam as margens emolduram também quadros e enfeitam cenários. Prosseguindo por estradas inventadas em vertentes íngremes, torneando o tempo, chega-se à primeira paragem, São Leonardo de Galafura (GC4YTJJ). Miguel Torga, o poeta que melhor soube descrever estas encostas sublimes, recebe-nos com palavras de inspiração e conforto. A paisagem é de facto um abuso da Natureza e ler aqueles versos fantásticos é um assombro de beleza. A cada olhar, em cada perspetiva, tenta-se perpetuar as imagens na memória. E, ainda assim, cada regresso é diferente e especial.
Lá em baixo, acompanhando fielmente a margem do rio, segue aquela que alguns consideram a melhor estrada do mundo (GC5T7J6). Opiniões e algoritmos à parte, é indubitável que será uma das mais bonitas. Descendo a encosta e cruzando a ponte, encontram-se inúmeras quintas engalanadas que merecem uma visita demorada (GC5HEXH). Depois, contemplação após vislumbre, chega-se ao Pinhão (GC1X76Q). Na estação, enquanto se aguarda pelo comboio, é possível revisitar a história do Douro pela arte dos azulejos. Ali tudo parece parado num tempo bucólico e despreocupado.
O rio é como a própria vida. Nem sempre é calmo, cristalino e fácil; muitas vezes torna-se colérico e inesperado. Apesar de domado por sucessivas barragens, ocasionalmente sobe às arribas e consome as margens. As águas arrastam tudo, adquirindo uma tonalidade terra-tumultuosa. Longe vão os dias em que os barcos rabelos deslizavam a vida pelo rio em viagens imprevisíveis; agora, do conforto dos passeios turísticos, tudo parece mais simples e controlado.
Deixando para trás outros miradouros, seguindo por estradas e atalhos meandrosos, encontra-se o Tua. A barragem (GC37Q9X) surge como uma crosta na paisagem, que supostamente deveria ser protegida. Como uma ferida aberta, continua-se a escarafunchar as encostas do rio para construir algo que meio mundo julga desnecessário. Mesmo em termos objetivos, considerando o impacto negativo provocado pelo desaproveitamento turístico, presente e futuro, são muito discutíveis os benefícios desta construção. Algumas barragens, ainda que nos tragam energia, levam-nos a alma.
Em cada instante surgem motivos para parar e contemplar. A paisagem vai-se tornando mais selvagem e menos geométrica. A mistura dos espaços domesticados em vinhas e olivais com áreas de natureza conferem às encostas do Douro um equilíbrio inspirador (GC4XK93). Nada parece imposto ou falso. Ao longe, São Salvador do Mundo é um gigante adormecido, emprestado a este mundo para deleite de quem o alcança (GC1284Q). A encosta escarpada desce em penedia e arvoredo até encontrar o rio. Apetece ficar por ali indefinidamente.
O Douro é paisagem e vinho. Ambos fermentados ao longo de séculos pelo lavor das suas gentes. A paisagem fica, mas o vinho parte. Todo este trabalho de arte e tradição segue a jusante do rio até à foz. Lá chegado, delonga-se algum tempo por Gaia, que o vai envelhecendo nas caves. O Porto mete-lhe depois um rótulo e envia-o para o mundo. Não querendo discutir a importância das etapas, parece injusto negligenciar pelo nome a terra-mãe em favor do local de batismo. Este vinho deveria ser do Douro, e não do Porto.
As viagens pelo Douro despertam frequentemente uma vontade instintiva: procura-se em cada encosta o sítio perfeito para morar. Aos poucos, e quase sem o notarmos, vamos construindo de facto uma morada imaginária de memórias no Douro, sempre disponível para nos albergar de qualquer despejo fortuito do mundo.
Artigo publicado na GeoMagazine#21.