Pés nas Rocas

O plano inicial para este regresso à Serra do Gerês passava por um percurso em companhia com subida pelo Prado do Vidoal, passagem pela Rocalva e Prados da Messe, seguindo-se a descida pela Costa da Sabrosa e o regresso pela frondosa Mata de Albergaria, com a devida bênção do ICNF. Porém, a meteorologia acabou por alterar o plano e quase o cancelou. Com a promessa de bom tempo para domingo, apesar das indisponibilidades da companhia, acabei por manter a ida.

Numa revisão de expetativas e tendo em conta que este ano deverei abdicar da típica participação numa prova de ultra trail, acabei alargar o âmbito, multiplicar dificuldades, somar quilómetros e avançar em modo solitário. Como habitualmente, o aumento de expetativas destas aventuras faz que com o sono da noite anterior se dissipe. Desta vez foi ainda pior, visto que a meio das considerações do percurso surgiu a ideia peregrina de fazer uma abordagem circular com subida aos quatro picos icónicos: Roca Negra, Rocalva, Pé de Medela e Pé de Cabril.

Pouco depois das 8h já estava na Portela de Leonte e lancei-me à subida empedrada até ao magnífico Prado do Vidoal, que encontrei repleto de vaquinhas. Prossegui até à Portela da Freza e fiz o primeiro desvio do dia, continuando depois para o Borrageiro com passagem pelo Arco. Ainda em modo acelerado, desci a encosta, passei pela encruzilhada sem problemas de trânsito e fiz-me à subida da Roca Negra. O caminho já é conhecido, pelo que esta primeira subida não trouxe surpresas. Lá em cima reencontrei a fantástica vista para a Rocalva, talvez a minha preferida do PNPG, e as palavras de Miguel Torga, cerca de 12 anos depois de as ter visto ali pela primeira vez.

 

Aconcheguei as memórias no regaço, desci o penhasco e acelerei até ao Prado da Rocalva, onde tudo também estava no mesmo sítio. Segui depois para o grande desafio do dia: subida à Rocalva. Sabia de antemão que seria difícil, mas queria sobretudo perceber até onde conseguiria subir. Abordei o monólito pelo lado Este, subi um pouco e venci o Hillary Step. Andando um pouco mais cheguei à fresta referenciada para a ascensão, que infelizmente era o leito de um pequeno ribeiro. Tornou-se então claro que teria de cancelar a tentativa de subida por falta de condições: até poderia conseguir subir, mas a descida poderia complicar-se. Antes, esta pequena desilusão seria mais pesada e difícil. Porém, no Gerês, aprendemos a dar tempo aos bons desafios.

Prossegui pelo planalto e cheguei ao Prado do Conho. Após as fotos habituais segui em direção aos Prados da Messe, mas resolvi fazer uma inversão no próximo ribeiro, subindo a encosta por um trilho desconhecido que me haveria de levar ao Pé de Medela. Apenas ali tinha estado há cerca de 12 anos e na altura tinha ficado com a sensação que a ascensão seria muito difícil. Bem, na verdade, apesar de ser inclinado, vencido o desafio mental de observar a longa curva da subida, basta ter algum cuidado e assentar bem os pés e as mãos (principalmente na descida). Passado o desafio, é apenas uma questão de procurar pelo caminho feliz para chegar ao topo, onde aproveitei para almoço com vista para o desafio derradeiro e o longo caminho até lá, o Pé de Cabril.

Com mais algumas subidas e descidas, passei ao lado das Albas e desci para o Prado da Messe, onde aproveitei para abastecer de água e refrescar os pés. Avançando pelo planalto, segui na direção dos Prados Coveiros e fiz a descida da Costa da Sabrosa. Cruzei a estrada da Mata de Albergaria e lancei-me na subida da encosta da Varziela, por onde nunca tinha andado. O trilho é bastante interessante, mas infelizmente (ou felizmente) está com alguma vegetação, o que dificulta o processo. Durante este percurso fiz três pequenos desvios para aceder ao Alto da Bemposta, às vistas para a albufeira de Vilarinho e ainda às Pias de Cancelo. Do outro lado da serra, o Pé de Medela parecia um farol, iluminando na vontade o trilho a seguir.

Encarei depois a assombrosa visão do Pé de Cabril e convenci-me facilmente que teria de subir ao seu topo. Pelo caminho, o cansaço do corpo ia-se acomodando aos desejos da alma. Esta subida também já era conhecida, pelo que foi sobretudo uma questão de manter o cuidado e o discernimento. Apesar de ser repetido, há sempre um momento em que o fôlego parece desaparecer quando se enfrenta o Hillary Step da via ferrata. Mesmo em repetição, lá em cima, a escolha do caminho feliz pelos túneis rochosos é também um bom desafio de memória.

Como estava em modo de caminhar por locais novos, na descida do Pé de Cabril acabei por prosseguir pelo trilho da Silha dos Ursos e virei mais à frente, um pouco antes da Cabana do Prado, pela descida para a Portela de Leonte. Porém, acabei por arrepender-me, devido ao excesso de vegetação, o que muitas vezes tornava impercetível o trilho.

Foram cerca de 32 km e 2000 metros de subida acumulada em 11 horas. O desafio de subir aos quatro picos icónicos num dia parecia inicialmente difícil. Porém, pé ante pé e mão após mão, esteve perto. Num próximo regresso à Rocalva gostaria de finalmente conseguir alcançar o seu cume, eventualmente em companhia. Espero também voltar a fazer este percurso para concretizar a ideia inicial. No PNPG devemos sempre regressar aos sítios onde somos felizes.

Pés nas Rocas

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