Manel retirou depois a cobertura, feita de uma câmara-de-ar da roda de um camião, e tentou colocar o motor de rega a funcionar. O barulho tonitruante acabou por assustar Girolme, que se afastou ligeiramente. Como não estava a puxar a água, Manel teve de o desligar e repetiu, em vão, o procedimento. No final de mais uma tentativa, Manel colocou-se depois ao lado de Girolme e, passando a mão pelo bigode saliente, concluiu:
– Trabalha e nom deita água: só pode ser da bela.
Girolme nada sabia sobre motores. Entretanto, Asdrúbal, perturbado pelas tentativas infrutíferas, chegou à fonte. Apelidando o filho de «coisa bruta», meteu a mangueira para dentro da água e pôs o motor a trabalhar. Mandou depois Manel seguir a água e começar o regadio. Desculpou-se então perante Girolme por algumas falhas do filho e adiantou que apesar de ser despassarado, ele era boa pessoa. Girolme sorriu e pensou que deveria bastar ser-se boa pessoa; o resto era irrelevante. Seguiram depois ao longo do rego da água e encontraram Manel muito atarefado, rodopiando com perícia a enxada por entre a folhagem das batatas.
Girolme voltou à capela e reencontrou Luís, que estava sentado debaixo de um sobreiro a esculpir num pedaço de cortiça. Ali permaneceram por mais de duas horas, enquanto o sol contornava o mosteiro e ameaçava esconder-se por detrás da encosta. Falaram sobretudo do passado de Girolme e de como ele ali tinha chegado. Girolme lá foi dispondo as memórias em histórias mais ou menos verosímeis. Valorizou o que lhe parecia mais relevante e obliterou as contrariedades: mencionou que era amigo do doutor António, mas não referiu o tempo da prisão; salientou a sua dedicação a Nossa Senhora, mas ignorou a experiência circense; incluiu a mais-valia de uma experiência laboral noutro país, mas não referiu a clandestinidade. Luís também ia adiantando alguns pormenores sobre si e a sua família, mas falava principalmente do trabalho. Apesar de Girolme lhe parecer um pouco estranho, Luís parecia disposto a emprestar-lhe as chaves da confiança.