Sombras de Silêncio #314

Já depois de o sol ter desfeito a sombra, Girolme tentou esquecer a vergonha e seguiu até ao casebre que vira do miradouro. Todavia, avistou o mesmo homem vestido de negro à porta do edifício. Reformulou a vontade pelo instinto e regressou à sombra da árvore. Notou então que algumas pessoas começavam a arrastar cobertores para o casebre. Algum tempo depois, Girolme ainda considerou reaproximar-se do casebre, mas as palavras ameaçadoras do homem convenceram-no a deixar-se ficar por ali, enquanto a fome lhe trazia lembranças das suas desventuras com Bilinho.

Veio a noite e Girolme acomodou-se ao frio e aos sonhos desfeitos. Nos dias seguintes, Girolme deambulou sub-repticiamente pelo lugar. Considerou mesmo que, dadas as circunstâncias, aquele até seria um bom sítio para viver, não fosse o medo que o homem de negro lhe incutia. Os outros habitantes, pouco importadas com a sua chegada, viviam com pouco e pareciam não querer mais. Girolme tentava camuflar a fome com algumas idas à taberna e encontrou uns trapos para se cobrir durante a noite, debaixo da mesma árvore, enquanto o corpo espirrava arrelias num crescendo de intensidade.

Cerca de uma semana depois, cada vez mais constipado e doente, Girolme decidiu por fim aventurar-se para chegar ao casebre. Mas fê-lo por outro acesso, que descobrira entretanto. Desceu uma escadaria próxima, motivado em dar um rumo à sua vida. Ao chegar ao fundo foi retido por um ligeiro lamentar, num tom arfante e prolongado. Espreitou num dos lados e viu um homem sentado. Estava impecavelmente vestido e não deveria ter mais de quarenta anos. O rosto era tão magro como o do seu espetador e debaixo dos seus olhos entreabertos formavam-se duas covas negras. A Girolme pareceu que aquele homem deveria ser o porteiro do local. Assim, resolveu apresentar-se e pedir-lhe se poderia viver no casebre:

– Bom dia, eu sou o pastor Miguel Girolme e… sabe eu também sou… já fui porteiro e era para saber se posso ir viver p’rali?

– Ó penumbra… desampara-me a loja que estás a tapar-me o sol – respondeu o homem.

Sombras de Silêncio #314

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