Sombras de Silêncio #284

A forma simplista com que Girolme descreveu os seus últimos anos levou o presidente a entrar numa espiral de perguntas. Girolme lá foi respondendo conforme a memória lhe permitia. Em relação ao incidente do atentado falhado tiveram que ser os polícias a adiantar mais pormenores. O doutor António referiu então para os polícias que, dadas as circunstâncias, Miguel Girolme deveria permanecer no anonimato e ninguém poderia sonhar que ele tinha evitado o atentado. Arriscava-se a que algum jornalista mais abelhudo descobrisse a história da sua vida. Ainda assim, muitas dúvidas prevaleciam. O doutor António mandou então que os polícias se retirassem e arrastou a conversa com Girolme até ao jantar. As favas com chouriço chegaram cerca de uma hora antes do pôr-do-sol, enquanto Girolme descrevia a forma como veio a conhecer Bilinho no caminho para Moura. Quando acabaram de jantar, o mordomo chegou-se à mesa e colocou-se junto do presidente, confidenciando-lhe que tinha novidades do diretor da PIDE, que estava ao telefone. O presidente levantou-se, pediu desculpa pela ausência e seguiu para o interior do forte, regressando cerca de vinte minutos depois.

Entretanto, Girolme levantou-se e, de forma envergonhada, começou a passear o seu fato novo, lamentando apenas que Bilinho não estivesse ali. Seguiu depois até à muralha para espreitar o mar e regressou de seguida. Pensou então que o reencontro inesperado até poderia ser um bom augúrio para um outro reencontro há muito desejado. Todavia, sabia que tinha a esperança presa por um fio invisível. Alheado, enquanto caminhava pelo pátio, ao chegar ao guarda-sol deu um ligeiro pulo para cima da cadeira de lona onde tinha estado sentado o doutor António. A cadeira cedeu um pouco e ouviu-se uma chiadeira abafada. Se não fosse por ser magro, certamente Girolme acabaria no chão. A cadeira aguentou e ele levantou-se de imediato pois não queria ser tomado por um convidado ingrato. Sentou-se então na outra cadeira e o doutor António chegou logo de seguida. O anfitrião permaneceu de pé, em frente a Girolme e pôs as mãos sobre a mesa.

– Meu Deus, o que é que eu fiz! – exclamou o doutor António, taciturno.

Sombras de Silêncio #284

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