Ficaram os dois por alguns instantes num silêncio cavado, divagando sobre o passado. Girolme recordou então o abandono ao seu amigo Bilinho e a culpa pesou-lhe na consciência. Os olhares prenderam-se depois no horizonte azul. Ambos tinham percorrido um longo percurso desde que saíram de Coimbra. Num momento de redenção, voaram desejos sobre um regresso ao passado, em tempos distintos, mais justos ou menos sôfregos. Enquanto deixavam pousar a quimera inaudita, cada um refugiou-se dos seus medos. Se um acomodou-se à obrigação de fazer cumprir o dever ideológico, o outro duvidou apenas se a sua existência teria valido a pena, tanto para si como para os outros. Após mais alguns momentos de introspeção, sem que Girolme percebesse o que estava a acontecer, o doutor António mandou chamar os polícias e perguntou a um deles:
– Carlos, nós não temos um prédio ali para os lados de Carnide que alugamos a agentes e às famílias que vêm de fora de Lisboa?
– Temos sim – respondeu de pronto o homem.
– Pois muito bem – retorquiu o doutor António –, você vai entrar em contato com o Pires, do quartel, para saber se existe algum apartamento vazio… um dos mais pequenos. Pode ligar mesmo daqui, já de seguida. Se houver vaga, faça o favor de lá acomodar este senhor ainda hoje. Seria bom que houvesse vaga. Ah… e ele pode ficar lá a servir de porteiro. Depois trate dos pormenores e das contas.
O polícia ausentou-se e o doutor António convidou Girolme para um pequeno passeio junto à muralha, recordando episódios e pessoas de Coimbra. Com o pôr-do-sol, estavam para sair do pátio quando os polícias regressaram com um sorriso institucional.
– Existe vaga e o lugar de porteiro também está assegurado. Falei com um colega e ele sugeriu um salário de quatro contos de réis, pago pelos condóminos, e uma renda no valor de mil escudos a favor do Estado. Parece-lhe razoável, senhor presidente?
O doutor António anuiu e sorriu para Girolme, que retribuiu o sorriso.
– Está a ver? Tudo está bem quando acaba bem! O que lá vai lá vai e o que importa é que tudo se resolveu. Vamos lá então. O Carlos irá levá-lo até ao apartamento. Agora preciso de descansar. Foi um dia de emoções! Amanhã ou depois mandarei alguém buscá-lo para saber se está a correr tudo bem e para conversarmos mais um pouco – terminou o doutor António, oferecendo um aperto a que Girolme se agarrou de imediato.