Logo depois de saírem do cemitério, Bilinho e Miguel puseram-se a discutir sobre a ira de Marco e naquilo que lhes poderia acontecer. Se, para Miguel, o ato dissimulado poderia ser explicado por uma falha do pároco, sendo que então as suas ações pareceriam mais angelicais do que demoníacas, para Bilinho não havia justificação plausível. Perante essa perspetiva, e antevendo o que o esperaria, ele não tinha outra alternativa para além da fuga. Tal acabou por parecer um pouco estranho aos olhos de Miguel. Porém, reconsiderando, Miguel sentiu ainda mais consideração por Bilinho. Parecia-lhe tão abnegado e altruísta que não se importava de enveredar por uma vida desterrada ao invés de responsabilizar o padre pela falha do relógio. Quando iam a correr em direção à casa, Bilinho recordou alguns desígnios antigos e, entre as respirações ofegantes, propôs:
– P’ra Lisboa… é p’ra lá que vamos. Que me diz? Metemo-nos no rio e chegamos lá num instante. Amanhã, por esta altura, já lá estamos!
Num primeiro momento, Miguel Girolme considerou a oferta demasiado desesperada. Desconhecia ainda se o rio que seguira desde Espanha iria desaguar em Lisboa. Porém, talvez Deus, ou mesmo Nossa Senhora, já tivesse feito todos os rabiscos e às pessoas bastaria segui-los. Seria inevitável? Por outro lado, a vida em Moura parecia oferecer alguma segurança. Concluiu então que tudo poderia mudar rapidamente e talvez as pessoas não compreendessem realmente o que tinha acontecido. Só por parecer comunista, um assunto eminentemente terreno, passara uma eternidade na prisão; sabe-se lá o que lhe poderia acontecer por se imiscuir nos assuntos de Deus!
– Eu acho bién – concordou por fim, lembrando-se depois da possibilidade de reencontrar a sua princesa.
Para Miguel, bastar-lhe-ia vê-la mais uma vez e contentar-se-ia que a imaginação lhe emprestasse a vida que nunca teve.
– E a chuva? – perguntou Bilinho, subitamente aterrorizado pela perspetiva de não ter pelo menos um sombreiro.
– A gente acoita-se – respondeu Miguel, minimizando o pavor do companheiro.
– Ah, Girolme, e isso lá vai assim?! Vê-se mesmo que nã percebe nada da ingricola. Lá pode ser! Quero ver quando ela estiver a dar-lhe pelos… calcanhares, onde é que se vai acoitar? Nã! Vamos buscar os sombreiros e havemos de levar os que pudermos. A gente acoita-se?! Oh, valha-me a Nossa Senhora d’Agrela, que nã há santa como ela.