Sombras de Silêncio #268

Miguel Girolme desconfiou da conversa. Pareceu-lhe que Deus não haveria de guardar as pessoas debaixo da terra durante tanto tempo. Porém, até podia ser que aquele tempo servisse para pesar bem os pecados. Depois, logo se veria se a alma subia aos céus ou descia às profundezas. Miguel perguntou-lhe então qual seria a razão do número. Bilinho lá foi tropeçando nas palavras e acabou por garantir que era assim por «feitio de Deus».

Miguel passou o dia seguinte a considerar a situação da pobre rapariga, entregue à terra sem orientação alguma. Pensou ainda que, durante a sua vida, ouvira histórias de pessoas que ficavam presas neste mundo e cujas almas andavam perdidas. Acabou por concluir que de facto deveria ser muito importante levar o relógio para eternidade. Bilinho confirmou-lhe a sentença e adiantou ainda que Sofia, pelo facto de ter cometido suicídio, deveria estar ainda mais necessitada de ajuda. Todavia, Bilinho tinha um plano:

– Logo à noite, vamos… cavamos e abrimos o caixão e tordos p’ra fora. E… já cá canta! Girolme, é isso mesmo! Vamos lá logo. Sem ninguém saber, ou o padre está feito ao bife. Os dois abrimos aquilo num instante. Ninguém vai saber. Só os grilos. Mas esses que se lixem! Vamos e pomos e tiramos. Ai o padre! Acudam-lhe… ninguém pode saber!

Miguel ouviu com atenção o discurso desconcertante e, sentado ao redor da mesa, considerou que era um pouco arriscado. Adiantou ainda que não sabia lidar com mortos.

– E a rapariga? Como fica?! P’ra você ‘tá tudo muito bom. Comer e dormir! Um dia atrás do outro. E ela? Ali, sozinha, sem ‘sprança – tentou convencê-lo Bilinho.

Apesar das imagens incompreensíveis, Miguel acabou por anuir que Sofia não tinha culpa. Concordou então em ir até ao cemitério e ajudá-lo na tarefa, mas nem por isso estava disposto a lá deixar o seu relógio:

– Nem que ela o peça!

Agilizaram o jantar e retardaram a ceia, saindo de casa por volta das onze horas. A lua permitiu-lhes alguma visibilidade entre o silêncio das sombras. Ao chegarem ao cemitério, Bilinho foi de imediato buscar duas pás atrás de um jazigo e começaram a cavar. Usaram de mil cuidados para que a sua presença não fosse notada, quer pelos vivos, quer pelos mortos. Desconheciam inclusive qual dos cenários seria o pior.

Sombras de Silêncio #268

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