Sombras de Silêncio #267

Manhã em melancolia e as pessoas começaram a chegar à igreja. Pouco passava das nove horas quando o padre iniciou a cerimónia, que se estendeu por mais de uma hora. Pediu que os céus perdoassem o «ato irrefletido» e insistiu que as mulheres honradas deveriam saber reconhecer os perigos do amor carnal:

– Na vida, só existia um amor verdadeiro: o amor a Deus.

No final da cerimónia saíram em procissão para o cemitério. Os familiares levavam o corpo, seguindo-se o padre, as mulheres de véu negro e por fim os homens, que iam trocando impressões entre si. O cortejo fúnebre chegou em tristeza ao cemitério, onde já estavam Bilinho e Miguel Girolme. Entre muitos queixumes e gritos de desespero, o corpo foi emprestado à terra fria. A mãe rogou a Deus até à exaustão da saudade para que a filha se erguesse no último momento e saísse da miséria sepulcral. Depois, as pessoas foram atirando um punhado de terra para cima do caixão. No final, Tirinhos, em silêncio, pegou na pá que Bilinho segurava e começou ele próprio a tapar a cova. Tal não agradou ao coveiro, que estava esperançoso pela oportunidade de terminar o trabalho sozinho, como sempre fizera até então. Miguel olhava assombrado para o ritual, perspetivando a tristeza que aquele homem deveria estar a sentir. «Viver é perder», lamentou. Ele também se perdera de algumas pessoas na vida. Ali, com a memória prostrada, sentiu que também estava a enterrar alguns infortúnios do passado. O sonho de uma vida misturado com outras vidas. Porém, ainda que estivesse longe de si, Ritinha não teria sucumbido a algum mal de amor. Desejou então ardentemente vê-la uma última vez.

Quando Tirinhos acabou a empreitada foi sentar-se num banco que existia no corredor principal do cemitério, em frente à sepultada, e por lá se deixou ficar. Já não tinha para onde ir. Bilinho e Miguel também saíram e foram para casa. No caminho, Bilinho mostrou-se muito preocupado com o último descanso de Sofia. Adiantou que o padre lhe confidenciara que se esquecera de lá deixar um relógio. Assim, ela não saberia qual era a altura certa para subir aos céus. Explicou depois que tal acontece à vigésima quarta hora do vigésimo quarto dia após a morte.

Sombras de Silêncio #267

Comentários