Sombras de Silêncio #240

Com o tempo, Miguel foi-se apercebendo que a linguagem estranha tinha afinal algumas palavras parecidas e que permitiam uma compreensão possível. Poderia ainda ser aprimorada por sinónimos compatíveis. Ou então por gestos. Os dias foram passando, o frio foi desaparecendo e Miguel lá se foi aguentando. Ao despertar, logo pela manhã, descia o monte e ia alimentar os animais. Ana Maria trazia-lhe um pedaço de pão e ele sentava-se debaixo da parreira, à espera das ordens do patrão. Aos domingos, o pão era acompanhado por algum queijo. Por vezes, Miguel não fazia o trabalho da forma que Pablo pretendia e lá ia ouvindo alguns impropérios. A partir deles, foi aprendendo a medir a insatisfação provocada. Por vontade de Isabel, Miguel só entrava na casa para almoçar e para jantar. Todos os sábados, ao fim do trabalho, Miguel levava um balde de água para o moinho e cuidava da higiene. Pablo já lhe tinha emprestado uma tesoura e uma navalha para tratar da barba e cabelo.

Ao fim de três meses, Miguel encheu-se de coragem e mencionou a Pablo que ainda não tinha recebido dinheiro algum. O patrão lembrou-lhe então que a ingratidão era das formas mais desprezíveis com que alguém poderia agradecer a benesse de dormir e comer de graça. Miguel, apesar de não compreender algumas palavras, entendeu a entoação. Encolheu-se em silêncio e amaldiçoou a ganância que o condenara àquele tratamento. No entanto, depois de ouvir o que não queria, ainda acabou por receber uma nota de cinquenta pesetas. Como não tinha como o gastar, escondeu-o num buraco do moinho. Todavia, uma semana depois, quando foi pedir a Pablo que lhe arranjasse umas ceroulas novas, o patrão tratou logo de lhe aliviar as economias. Tudo o que era grátis até então passou a ser cobrado, incluindo a comida. Pablo pesava as receitas e as despesas que Miguel gerava, com uma balança mais ou menos distorcida, e dava-lhe por vezes algumas pesetas. Porém, no final de mais um mês, Miguel já estava em dívida. Acabou por conseguir o perdão da mesma na condição de nunca mais falar ou pedir dinheiro.

Anita, que inicialmente estava proibida de brincar junto a Miguel, foi aos poucos ludibriando a norma e deixou-se seduzir pela curiosidade que aquele homem estranho e tímido lhe despertava. Sentia alguma bisbilhotice em saber o que se estendia para lá da fronteira e que histórias lá habitavam. Miguel ficava agradado com a sua presença, apesar da dificuldade em manter um diálogo. Com Ana Maria as conversas não se estendiam muito para além dos «buenos días» com que se saudavam na manhã e o «adiós» depois do jantar. Ocasionalmente, Paquito e a mulher visitavam à quinta, mas Miguel apenas os conhecia à distância.

Sombras de Silêncio #240

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