Sombras de Silêncio #241

As folhas começaram a cair, os dias a minguar e a apanha da azeitona aproximou-se. Miguel andava entusiasmado com o regresso de Gabriel. Tinha saudades de falar a língua que os pais lhe ensinaram e ser entendido. Porém, logo a seguir à meada de outubro, Pablo adiantou-lhe que a estadia de Gabriel iria ser muito breve. Comprara, numa feira de agricultura em Badajoz, uma peça metálica, com a forma de um braço, que encaixava na parte traseira do trator e estremecia. Miguel não percebeu de imediato a funcionalidade de tal equipamento, mas compreendeu pela experiência que poderia ser muito útil para, ao sacudir as oliveiras, fazer cair a azeitona. Gabriel chegou e partiu no mesmo dia, para grande desgosto de Miguel, que mal teve tempo para conversar com ele. Carlos apareceu dois dias depois, mas também foi dispensado. Ainda apareceu um outro espanhol, mas também levou guia de marcha.

Apesar da inconveniência, o trabalho tornou-se bastante mais simples. As mulheres dispunham os toldos para depois Pablo atrelar o trator e abanar as oliveiras. Miguel estava incumbido de terminar o serviço com as varadas. Apesar da diminuição da mão-de-obra, a apanha ficou concluída ainda antes da chegada do ano novo. Para tal também ajudou o decréscimo da produção. Porém, logo no primeiro ano o investimento trouxe dividendos. Miguel também acabou por beneficiar com a mudança, pois o patrão decidiu pagar-lhe trinta pesetas.

Os meses atropelaram-se, as estações sucederam-se e o tempo seguia lesto, como se fosse zurzido por um deus danado. Miguel foi-se acomodando ao país e às circunstâncias com pequenos sobressaltos, ultrapassados por sucessivas cedências. O cabelo foi ficando mais esbranquiçado, apesar de continuar abundante; a pele tornou-se mais enrugada e o caroço da garganta salientou-se; os ossos ficaram mais suscetíveis ao esforço; as pernas arquearam ligeiramente; as costas começavam a curvar e a visão foi ofuscando os motivos mais afastadas. A passagem do tempo foi obliterando as memórias de um passado subjugado por enganos e prisões que lhe levaram metade da vida. Apesar da saudade da vida que não chegou a viver, Miguel acabou por convencer-se de que a sua continuidade na quinta era uma verdadeira bênção de Nossa Senhora.

Sombras de Silêncio #241

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