Sombras de Silêncio #234

Miguel ia sorrindo e imitando o que via os outros fazer, tentando não defraudar as expetativas. À mesa, todos os olhares estavam postos sobre si e isso provocava-lhe alguns calafrios. Mas a vida na prisão ensinara-o a não suspirar sem pedir permissão. De forma inapelável, a conversa acabou por descambar para o passado de Miguel, que lá foi contando, sempre com um sorriso nervoso, os seus desencontros. Todavia, esquivou-se aos pormenores sobre prisão, ocupando esse tempo, de forma mais ou menos equilibrada, entre o trabalho de doutor em Coimbra e as aventuras de Estupidus. Terminou com a garantia de que, ainda assim, preferia que as pessoas o tratassem por pastor, conforme aliás se apresentara. Gabriel foi traduzindo, conforme os seus conhecimentos, mas boa parte do discurso errante era entendido e todos o tomaram por pouco ajuizado.

No final do almoço, Miguel perscrutou o relógio de soslaio e adiantou-se para ir trabalhar. Estava empenhado em demonstrar que sabia retribuir as boas ações que lhe faziam. Todavia, foi corrigido por Pablo que lhe lembrou que, em Espanha, a seguir ao almoço, todos vão dormir a «siesta». Apesar de achar o costume estranho e desnecessário, Miguel fez como os demais e veio para debaixo da parreira. Mesmo sendo inverno, estava um dia quente e abafado, como se anunciasse uma trovoada. Foi então que Miguel compreendeu a razão pela qual os espanhóis iam dormir ao início da tarde. Conforme Gabriel lhe explicou, naquele país, para além de falarem com palavras diferentes, tinham ainda outras disparidades, como o fuso horário. Miguel teria de «adiantar o relógio uma hora». No início, Miguel não percebeu como é que se podia adiantar uma hora, já que a única coisa que o pai lhe ensinara sobre o relógio era que, todos os dias, tinha de lhe dar corda. Ainda que um pouco receoso, Miguel anuiu e emprestou-lhe o relógio para a demonstração.

– Puxas esta peça p’ra cima, rodas p’ra trás, e depois é só empurrá-la p’ra dentro.

Miguel estava deveras impressionado com a simplicidade pela qual poderia ter resolvido tantos problemas ao longo da sua vida, em particular nos instantes em que chegava atrasado a algo ou para adiantar aqueles momentos em que o sono não pegava, nas longas vigílias noturnas. Considerou que os espanhóis eram de facto muito habilidosos!

Sombras de Silêncio #234

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