Sombras de Silêncio #223

Tudo parecia correr pelo melhor. Aníbal e o estalageiro desceram logo depois à taberna e foram celebrar o acordo com vinho. Miguel juntou-se-lhes, mas ao fim do segundo copo já não conseguia juntar duas palavras com sentido. Quando acabou o terceiro, ao tentar levantar-se, Miguel caiu no chão e assim permaneceu, rompendo o silêncio com baboseiras e tristezas. Os outros acharam aquilo muito estranho, pois não tinham memória de alguém que cedesse tão facilmente ao vinho. Carregaram então o seu corpo até ao quarto e depositaram-no no colchão, onde ficou preso à memória da sua princesa por alguns momentos, cedendo depois a um sono profundo.

Miguel apenas acordou no final da tarde, quando dois guardas irromperam pelo quarto e o puxaram por uma perna, fazendo-o cair no chão. Desnorteado, começou a esbracejar e a espernear até que um dos guardas se ajoelhou sobre o seu peito e o esbofeteou. A fuga durara menos de dois dias e o braço da justiça apanhou-o pouco antes de ele dar o salto para a inimputabilidade. Com algumas ameaças e sem qualquer explicação, algemaram-no e levaram-no para um carro que estava estacionado à frente da estalagem, empurrando-o para o banco traseiro. Ao lado, estava um outro carro e Aníbal estava no banco traseiro, com a cara tingida de sangue.

– Desculpe, eu devia ter… – gritou-lhe Miguel, com o coração desfeito, não apenas por ter sido apanhado, mas sobretudo pelo mal que pensava ter-lhe provocado.

– Pouco barulho aí atrás ou desfaço-te em pancada – interrompeu um guarda que estava sentado no lugar do condutor.

Entraram depois mais dois guardas para o banco traseiro e logo de seguida os carros arrancaram a alta velocidade em direção ao centro da cidade, parando na Praça da República. Os dois meliantes foram então conduzidos para duas salas diferentes, num prédio que se erguia ladeado por uma taberna e um pequeno mercado. A sala para onde Miguel foi levado possuía uma janela com vista para a praça, uma mesa e duas cadeiras que cheiravam a verniz e a reminiscências memoriais. Numa das paredes estava pendurado um quadro com um rosto conhecido. Miguel, que fora forçado a sentar-se na cadeira e ficara sem as algemas, olhou-o de forma demorada. O professor também envelhecera; tinha o cabelo esbranquiçado e puxado meticulosamente para trás; a cara tornara-se mais redonda, mas o tom cerimonial mantinha-se.

Sombras de Silêncio #223

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