Sombras de Silêncio #8

Miguel lembrou-se então de ver as horas, mas esqueceu-se do que tinha acontecido ao relógio. Decidiu então tentar desfazer uma dúvida que lhe fazia cócegas na consciência:

– Vossemecê sabe ler as palavras?

– Claro que sei, já fiz a sexta classe! – empertigou-se o rapaz.

Miguel pegou então no papel, que tinha encontrado dentro do relógio, e entregou-o ao rapaz. Apesar da letra miudinha, Nuno conseguiu dar entendimento às formas:

«Sombras de silêncio e solidão

Em segredo onde dão um mosteiro».

À medida que as palavras foram chegando aos ouvidos do pastor, outras começaram a fluir livremente na sua consciência, surpreendendo-o. De soslaio, quase sem o mundo saber, chorou. Recordou então o longínquo dia em que o pai o nomeou homem. Ficaram então os dois perdidos em mundos distintos. Enquanto Nuno divagava entre significados enrodilhados, Miguel deleitava-se com a recordação inocente do instante que julgava irremediavelmente perdido nas intermitências da memória.

– Ora leia lá outra vez – pediu o pastor.

O rapaz leu, releu e voltou a ler. Miguel, que há muito decorara o verso, ficou a remoer a consciência à procura de um significado inteligível.

– Onde encontrou isto? – perguntou Nuno.

– Por aí, no chão – respondeu o pastor, divagando.

O alvorecer de algum desassossego entre as ovelhas levou a que Miguel regressasse das memórias e interrompesse a conversa com o rapaz. Embora cansado, o pastor sabia que os lobos e cães vadios não lhe permitiam displicências ou desatenções.

Miguel continuou a guiar o rebanho durante o resto da tarde soalheira de março, serpenteando pela encosta sobranceira ao rio Dão. Quando considerou oportuno, o pastor investiu em direção ao mosteiro. Entre palavras desprovidas de significado, assobios repovoados por alguma musicalidade e gritos de descontentamento, Miguel devolveu o rebanho à segurança do curral e envolveu-se depois na ordenha. A artrite já não lhe permitia exercer a pressão adequada e era com muita dificuldade que terminava o seu trabalho diário. Para cúmulo dos seus infortúnios, os animais alvoraçavam-se facilmente.

Sombras de Silêncio #8

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