Sombras de Silêncio #5

Pousado sobre a mesa de pinho, o Cortébert Speciale continuava inerte e não dava qualquer sinal de vida. Pareceu-lhe então irrefutável que, para que os ponteiros voltassem a tinir, precisaria de ajuda. Saciado, Miguel saiu de casa e seguiu ao encontro de Luís, que no dia anterior lhe dissera para o ajudar a arrancar as ervas daninhas das vinhas. Apesar de o trator conseguir executar esse serviço no meio das longas carreiras, quando as ervas cresciam mais perto das videiras era necessário arrancá-las com o auxílio de uma enxada.

Depois de o acompanhar durante toda a manhã, e enquanto rumavam ao almoço, Miguel decidiu pedir-lhe ajuda.

– O seu relógio parou? Deixe cá ver isso – respondeu Luís, compondo a samarra e ajeitando o cabelo.

– Tome – respondeu Miguel, oferecendo também um sorriso.

– Você não diz nada sem se rir? – inquiriu Luís, forçando uma cara sisuda.

Atão… é o jeito – respondeu o pastor.

– Quem acertou foi o meu pai, que Deus o tenha no céu, ao dar-lhe a alcunha de Risadas.

– Foi – respondeu assertivamente Miguel, sorrindo.

Após uma breve análise do seu interior, Luís considerou que o relógio precisaria de ajuda profissional e prontificou-se a levá-lo a um relojoeiro de Mangualde. Apesar de a ideia não agradar de sobremaneira a Miguel, que não gostaria de se desfazer dele, pela falta de alternativas acabou por aceitar e agradecer, sorrindo.

No final do almoço, Miguel levou os restos das batatas e deixou-os na pia dos dois cães Serra da Estrela, Barcina e Butrão, que o esperavam com laivos de fome, numa casota anexa ao mosteiro. A sua natureza desconfiada obrigava a que estivessem acorrentados. No passado, o excessivo zelo protetor dos animais tinha provocado alguns problemas que resultaram num acumular de culpabilidade sobre os ombros de Miguel. O delegado do posto de correios da vila chegou mesmo a deslocar-se propositadamente à quinta para ser ressarcido. Em apenas um mês os cães conseguiram rasgar três uniformes do rapaz que distribuía o correio.

Após uma breve sesta sobre a ponte do ribeiro, Miguel soltou os cães e abriu as portas do curral. Numa vontade primeva e uníssona, o rebanho saiu, guiado pelos assobios e palavras dúbias do pastor. Os cães serpenteavam com facilidade entre as ovelhas, ladrando e corrigindo a progressão do rebanho. Quando alguma ovelha se afastava era de imediato perseguida e corrigida. A idade já não permitia que Miguel pudesse movimentar-se célere entre os montes. Era aliás com relevante dificuldade que calcorreava os prados. Apesar de o cansaço o perseguir diariamente, a tenacidade e a necessidade em mostrar-se útil forçavam-no a continuar, dia após dia.

Sombras de Silêncio #5

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