Sombras de Silêncio #4

Miguel Girolme tocou várias vezes nas rodas, mas os ponteiros não se mexeram. Ficou mais algum tempo a olhar para o interior do relógio, até que o papel captou a sua atenção. Revirou-o com cuidado e descobriu duas linhas de palavras manuscritas. Ainda que as pudesse diferenciar, não compreendia o que significavam. Desiludido, fechou ambas as tampas do relógio e meteu o papel no bolso da camisa. Algum tempo depois levantou-se do seu banco de madeira e chegou-se à janela, de onde tentou delinear as formas da solidão que se estendia para lá do mosteiro. À sua frente, as oliveiras baloiçavam levemente, embaladas pelo curso do ribeiro dos Frades. Cansado, decidiu endereçar as suas preocupações às curvas inóspitas do negrume. Pegou depois na vela e arrastou-se até ao quarto, um espaço exíguo de sonhos confinados; pouco mais cabia para além da cama, do pequeno armário e da mesa-de-cabeceira. Miguel inclinou-se e, com um sopro, apagou a chama da vela, elevando depois o olhar para lá do teto. Rogou então a Deus para que lhe adiasse o inverno. Depois de algumas voltas pela saudade, suspendeu a inquietação e adormeceu.

Pela manhã, Miguel acordou ainda antes de o sol espreitar no cimo do vale. Saiu lepidamente da cama, vestiu-se e foi lavar a cara ao ribeiro. De seguida, apanhou um cântaro no mosteiro e, passando sobre a ponte do ribeiro, dirigiu-se ao enorme curral onde estava o seu rebanho. Entrou, cumprimentou as ovelhas com sorriso ensimesmado e iniciou a ordenha.

– Bom dia, Miguel. Aqui tem as latas p’ró leite – disse-lhe Mariana, a governanta da quinta, que entretanto aparecera no curral.

Mariana Marques tinha nascido e crescido em Vila Garcia. Luís Marques, o seu marido, repartia com ela o governo da quinta e os dois já ali moravam há muitos anos. Ocupavam as funções que já tinham sido dos pais de Luís, Joaquim e Maria. Algum tempo após o casamento nasceu Tiago, de cara achatada e orelhas salientes, e cerca de quatro anos depois apareceu Hugo, circunspecto como a mãe. Pelo meio, Joaquim faleceu de cancro e deixou Maria entregue a um luto vestal. Enquanto Tiago se preparava para acabar o ensino primário, Hugo começaria a escola em setembro.

– Bom dia. Se quiser, já pode levar esta – retribuiu Miguel, sorrindo.

Mariana, com um xaile castanho posto sobre os ombros, estendeu a mão e pegou no cântaro, seguindo até casa. Entretanto, Miguel pegara numa das latas e continuou a sua tarefa, apesar da contestação eminente do rebanho. Depois de encher mais duas latas, entregou-as na casa dos seus empregadores e regressou à sua cozinha para preparar o pequeno-almoço habitual, uma sandes de queijo e um copo de vinho.

Sombras de Silêncio #4

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