Sombras de Silêncio #324

Quando o sol se escondeu por detrás dos prédios em construção, as velas iluminaram mil esperanças. Ao centro formaram-se dois corredores que se intersetavam numa enorme cruz. O grupo de Girolme estava próximo da capelinha. À medida que o tempo ia passando, as pessoas iam variando entre as rezas coletivas e as preces individuais, alternando nos desejos e aspirações. Girolme estava muito empenhado em demonstrar penitência e clareza nas ideias. Começou por tratar dos pecados menores, deixando os outros para o próprio dia das aparições.

Pelas dez horas da noite chegou ao santuário o andor com a imagem da santa. Era levado por seis homens de indumentária branca. O lugar resplandecia de luz, fé e conveniências. Seguindo a procissão, atrás do andor vinham vários cónegos e sacristãos, ostentando caras solenes. Ao ver finalmente a imagem de Nossa Senhora, Girolme sentiu-se a levitar para Deus; era como se todos os sofrimentos do passado se esfumassem perante a magnificência momentânea. À passagem do cortejo, as pessoas entoavam cânticos de adoração e elevavam preces aos céus.

 – É apenas uma… imagem, nada mais… – disse um homem que estava ao lado de Girolme. Tinha o cabelo negro e ligeiramente encaracolado; a cara era magra e parecia formar duas covas de tristeza. O tom trôpego fazia adivinhar ebriedade, mas estava apenas estarrecido. A roupa variava na coloração e sujidade que transpareciam da luz das velas. Nas mãos segurava um objeto enrolado num pano branco.

O comentário distraiu a concentração de Girolme, que não deixou também de sentir alguma indignação pelo vitupério, pois parecia-lhe que a santa era muito mais do que uma imagem. Todavia, aquela era uma discussão que ele não estava interessado em promover e optou pelo silêncio.

– Aqui não encontro… nem paz nem descanso… – continuou o homem, trocando o olhar entre a santa e o objeto enrolado, com as ideias a vaguearem entre continentes.

– Olhe que não, eu já encontrei – interrompeu Girolme, num tom de voz baixo e sem malícia, querendo apenas fazê-lo entender que ele estava errado e que, se soubesse procurar, encontraria a paz possível.

O homem olhou-o então de soslaio, ergueu a cabeça e disse:

– Há coisas que se fazem… há sítios onde não há luz… há vozes, há gritos… não há santas… não há homens que levem santas às costas… ninguém quer saber de nós… ninguém.

Sombras de Silêncio #324

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