Os dias foram passando. Por vezes, o guarda Costa ia buscá-lo para mais interrogatórios. Todavia, como a verdade custava a apurar, Miguel era repetidamente colocado em tratamentos dolorosos. O que mais lhe custava era a tortura do sono, arrastando-se pesarosamente pela realidade. Ainda que num primeiro momento tivesse achado alguma curiosidade quando o forçaram a fazer de estátua, em breve percebeu que o tormento era também terrível.
A vida na prisão é feita de rotinas, de tal forma que ao fim de algum tempo os dias deixam de contar, a vida desumaniza-se e transforma-se numa série ininterrupta de costumes. A alvorada decorria ao amanhecer. Pretendia-se que os presidiários entendessem o valor de um dia de trabalho decente. O serviço era distribuído de manhã, de acordo com uma escala previamente designada. Os presidiários faziam um pouco de tudo, desde cozinhar, limpar, sonhar e contestar de soslaio. Para além de se reencontrarem com quem foram, a realização destas tarefas tinha como vantagem a criação de alguns sistemas de comunicação camuflados. Por volta do meio-dia, a maioria das celas era aberta e os reclusos saíam, sempre em fila, para o almoço. À exceção daqueles que estavam num sistema mais apertado de vigilância e controlo, perto das três horas da tarde, os reclusos saíam para uma hora de recreio no pátio. A troco de um silêncio imposto, podiam erguer os olhos para o céu e sonhar a liberdade. Antes de anoitecer, os reclusos saíam novamente das celas para jantar e regressavam uma hora depois para mais uma noite solitária. Aos fins-de-semana, e com autorização prévia, os presidiários podiam receber visitas nos parlatórios. O vidro e os guardas deixavam passar algumas novidades e os carinhos desenhados por momentos.
Miguel também entrou na rotina da prisão e foi incumbido de descascar as batatas para a sopa. Logo no primeiro dia de trabalho, Miguel tinha à sua espera um saco de serapilheira de batatas escolhidas miudinhas e a ameaça de pancada no caso de não conseguir cumprir o serviço. Quando acabou, ainda a tempo, Miguel tinha os dedos polegar e indicador a sangrar. A audácia não caiu bem no guarda Costa, mas foi quanto bastou para o cozinheiro-chefe requisitar os seus serviços. Durante algum tempo, sempre que a ociosidade apertava, o guarda Costa gostava de infernizar Miguel, que ia resistindo, amorfo, às investidas, como se fosse um daqueles animais que perante uma ameaça fingem estar mortos. A indiferença de Miguel acabou também por esmorecer o interesse do guarda.