Miguel acordaria somente a meio do dia seguinte, quando a portinhola se abriu de novo para deixar entrar um pouco de luz e meia dúzia de feijões. As dores, contusões, feridas e escoriações mantinham o seu fulgor e mordiscavam-no de forma continuada. Ainda assim, nos intervalos da dor, Miguel pensava na sua princesa. Sonhava com centenas de carícias, mas temia as mil distâncias a que tinha sido votado.
Ao terceiro dia, a luz do mundo chegou com um sabor a favas. Até que a portinhola se abrisse outra vez, Miguel passou o tempo numa dedicação inexcedível a Nossa Senhora. Adormecia, entre os resquícios das dores, com a esperança de acordar debaixo da carroça da sua princesinha, a salvo daquele pesadelo. Ao quarto dia, e por julgar impróprios alguns rasgos de lascívia, considerou por bem pedir-Lhe então que o levasse para Coimbra, confinado àquele quarto com vista para a Sé Velha. Os dias e as dores foram passando e Miguel chegou mesmo a desejar o regresso à fazenda do tio. Pelo menos teria a mãe para o consolar. Encontrou então a razão de todos aqueles problemas: os céus culpavam-no por ter abandonado a mãe. Multiplicou-se depois em desculpas, cada uma mais sentida que a anterior e refugiou-se nas memórias dos pais.
Miguel passou quinze dias entre o segredo da escuridão e ninguém lhe dirigiu qualquer palavra. Entretanto, foi-se esvaindo de ideias e pensamentos. Chegavam-lhe, por vezes, algumas vozes ténues do exterior, que lhe lembravam que ainda existia vida no mundo. Quando já começava a duvidar do próprio nome, cerca de um mês depois de ter sido enclausurado, a porta abriu-se e um mar de luz inundou-lhe os sentidos. Fechou os olhos e colocou as mãos na cara, tentando proteger-se da imprevisibilidade. Um guarda irrompeu então pelo pequeno espaço, pegou-lhe num braço e tentou levantá-lo. Contudo, Miguel não se susteve e tombou para trás. Pela força, Miguel acabou por sair, com o cabelo desgrenhado e a barba proeminente. Escanzelado, encarou então o guarda Costa.
– Se parece um porco, se cheira como um porco, se fala como um porco, então é porque deve ser um porco. Não é assim, comunista?