Sombras de Silêncio #192

– Temos então, senhor Miguel Fernandes… ou devo chamá-lo Lenine? – perguntou o inspetor Fernando Sousa, sem permitir tempo para a resposta e abrindo a capa que tinha à sua frente – Você tem vindo a desenvolver uma carreira de oposição ao Governo da nossa pátria, não é assim?

Miguel, que pouco sabia dos trabalhos em que o outro estivera envolvido, não arriscou fazer qualquer comentário. Firmou um sorriso envergonhado, como se fosse uma criança que tinha feito alguma travessura e que se desculpava com a essência inocente da idade.

– Estou a ver que o gato lhe comeu a língua! Não se coíba, repita lá as intrujices que andou a espalhar por aí. Nós gostaríamos muito de o escutar.

Miguel ficou, de sorriso arrebitado, a imaginar um gato a comer-lhe a língua. Questionou-se depois sobre como surgem certos provérbios, cada um mais estranho que o outro. Respondeu depois que nada sabia.

– Não sabe? Não me diga que, de um momento para o outro, ficou estúpido. Olhe à sua volta! Eu não preciso de lhe dizer onde está. Aqui o tempo é o melhor remédio para curar esquecimentos. Para além do senhor Abrantes, quem são os seus comparsas?

– Eu nom sei – repetiu Miguel.

– Estou a ver que você não vai ser fácil. Comecemos pelo princípio. Onde é que nasceu? – perguntou o inspetor, entrelaçando os dedos das mãos sobre a mesa.

Miguel ficou agradado pela mudança da atitude, reconstituindo de seguida mentalmente o seu trajeto, ambicionando parecer coerente e assertivo.

– Vamos, desembuche homem, que não tenho o dia todo! – apressou-o o inspetor.

– Eu nasci em Lisboa – adiantou Miguel.

– Em que freguesia?

– Eu acho que nom foi numa freguesia… acho que foi em casa dos meus pais – garantiu Miguel.

– Oh, valha-me Deus! – exclamou o inspetor, furioso pela suposta resposta trocista.

Miguel não sabia o que dizer para agradar ao homem, mas ficou contente com a referência divina, por julgar que os homens devotos têm um trato mais agradável.

– Mas a casa pertencia a uma freguesia? – reclamou o inspetor, abrindo as mãos perante a evidência.

– Olhe, p’ra lhe dizer a verdade, disso de freguesias eu nom percebo…

– Está bem! – interrompeu o inspetor – Já entendi. E depois, o que é que lhe aconteceu? Como é que saiu de Lisboa? E para onde foi?

Sombras de Silêncio #192

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