Sombras de Silêncio #191

A porta abriu-se cerca de dois minutos depois e surgiram dois homens fardados que se puseram na retaguarda de Miguel. Num tom cerimonial, ordenaram-lhe que avançasse. Miguel assim fez, acompanhado pelo inspetor, que carregava a mala. A porta fechou-se no instante seguinte, o que preocupou bastante Miguel; não depositava muita confiança no guarda magricelas e suspeitou que ele pudesse ir embora sem o levar. Durante a viagem, no meio de tanto cruzamento, não conseguira decorar o trajeto. Resolveu então perguntar se iam ao encontro do seu amigo, o doutor António. O guarda que seguia à sua frente, quase da sua altura, mas bastante mais forte, voltou-se e, salpicando-o de saliva, avisou-o:

– O prisioneiro mantenha-se calado ou vai ter problemas, estamos entendidos?

Miguel acenou de forma assertiva, receando receber mais pancada. Entraram depois num dos pavilhões e prosseguiram por um corredor. Um dos guardas e o inspetor separaram-se deles, continuando Miguel e o outro guarda até uma pequena sala onde, à semelhança da sala na esquadra de Aveiro, apenas existia uma mesa, duas cadeiras e o mesmo retrato do doutor António. Miguel congratulou-se pelo reencontro possível, dissipando algumas dúvidas e receios de não encontrar o amigo. Considerou até boa ideia a disposição do quadro em sítios distintos para que os convidados conhecessem de antemão a cara da pessoa que os iria atender. Enquanto Miguel esperava, ansioso, pela chegada do seu amigo, o guarda manteve sobre ele um olhar suspeito e demorado por largos minutos. Entretanto, Miguel atingira o auge da impaciência e da fome.

Entrou depois um indivíduo na sala. Vestia um fato cinzento de tonalidade escura. Tinha a cara esbranquiçada como um fantasma e as orelhas salientes pareciam dar muito jeito para suster o chapéu. Sem dizer algo, o homem sentou-se na cadeira, tirou o chapéu e colocou-o cuidadosamente sobre a mesa, alinhando-o de forma a ocupar o canto inferior esquerdo. Depositou depois à sua frente uma capa castanha, sem a abrir. Atrás dele entrou outro guarda; tinha o nariz encurvado e as pernas arqueadas; era magro e os ossos das mãos salientavam-se; tinha ainda uma cicatriz, ligeiramente descaída para o lado direito, que lhe descia desde o meio da testa até à sobrancelha. O guarda pôs a mala do dissidente comunista ao lado do inspetor da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e afastou-se.

Sombras de Silêncio #191

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