Sombras de Silêncio #193

– Eu acho que… os meus pais saíram de Lisboa, quando eu ainda era pequeno, foram p’ra… agora nom me lembra do nome… p’ra uma terra e depois o meu pai foi p’ra guerra…

– A Grande Guerra? – interrompeu o inspetor, começando a rabiscar num papel que tirara do bolso.

– Pois… eu acho que foi grande… tão grande que ele acabou por lá ficar. Disseram-nos que ele tinha morrido. Depois, eu e a minha mãe fomos p’ra casa do meu tio e…

– Onde ficava a casa do seu tio? – interrompeu, de novo, o inspetor.

– Em Vila Nova da Renha – respondeu de imediato Miguel, satisfeito pela objetividade demonstrada.

– Tem a certeza? E onde fica isso?

– De onde se via o rio Tejo – retorquiu Miguel, sorrindo.

– E depois?

– Depois, um dia… abalei de casa, de comboio e fui p’ra… Coimbra onde conheci o doutor António – respondeu Miguel, olhando para o quadro, esperançoso que o homem à sua frente não lhe perguntasse o motivo da fuga.

– Doutores, há muitos! Que doutor António? – perguntou o inspetor.

– O doutor António Salvador, da unisidade, nom me diga que nom o conhece?

O inspetor apontou o nome e não quis alongar o assunto:

– E a seguir? Quando é que voltou a Lisboa? Como é que conheceu o senhor Abrantes?

Miguel ainda demorou algum tempo a interiorizar a miríade de perguntas, cada uma mais desconfortável que a anterior. Gostaria de ter pelo menos um dia para pensar numa resposta congruente, mas a insistência que o circundava não o permitiu:

– Foi… certo dia… que fui a Lisboa e… encontrei-o. Ficámos amigos e… comunistas.

– E começaram com as patifarias! – exclamou o inspetor.

Miguel não percebeu o comentário, mas respondeu afirmativamente, sorrindo.

– Quem eram os vossos comparsas?

– Isso… nom sei – garantiu Miguel, fechando o sorriso.

Ao ver que o inspetor se iria irritar com as incertezas, Miguel acrescentou que cada um escolhia um nome diferente em cada dia. Porém, o inspetor não ficou agradado com a resposta e levou as mãos à cabeça, puxando os cabelos para trás e promovendo um silêncio de culpa. Miguel não sabia onde estava; tampouco conhecia a razão pela qual ali tinha chegado e muito menos ainda era capaz de citar nomes. Esteve para o questionar de forma a esclarecer as suas dúvidas, mas desistiu da ideia; temia que eles desconfiassem da sua mentira e fossem em busca do circo, nomeadamente com a sua princesinha. De qualquer forma, quis acreditar que a inquisição terminaria em breve e voltaria para a sua namorada.

– O doutor António ‘inda demora muito? – perguntou Miguel, apontando para o quadro.

Sombras de Silêncio #193

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