Sombras de Silêncio #190

A viagem defraudou as expetativas de Miguel. Apesar de o automóvel ser mais cómodo do que uma carroça, estava chateado pelo facto de o doutor António morar longe da sua princesinha. Porém, nem tudo era inconveniente. Para além de ir reencontrar um velho amigo que muito o ajudara, era a primeira vez que viajava de automóvel. O condutor tinha um ar pesado e taciturno. Miguel ia no meio do banco traseiro, ladeado pelo guarda magricelas e por um inspetor de olhar mudo. Acomodado no assento almofadado, Miguel via a paisagem e a vida a serem deixadas para trás a uma velocidade insuspeita. A estranha engenharia automóvel suscitou-lhe uma dúvida, mas o condutor explicou-lhe que o movimento se devia ao trabalho de dois cavalos anões descobertos no Alentejo. Durante a viagem, Miguel pensou muito na sua princesinha. Tentou imaginar o seu rosto angelical nas nuvens que passavam, feliz por recordar a sua doce voz a confirmar o namoro. Conseguira por fim conquistar o coração da sua amada e nem precisara de a levar para uma lua-de-mel.

Quando chegaram à praça-forte de Peniche já o sol estava erguido a prumo no céu. O guarda e o inspetor conduziram depois Miguel de mãos atadas, passaram o fosso e chegaram à porta de madeira que ficava por baixo da ameia de vigia. Bateram e abriu-se um pequeno janelo, de onde surgiu uma voz que inquiriu sobre o assunto. O inspetor respondeu que trazia um comunista foragido da justiça, capturado em Aveiro.

– Estamos a par da situação. Façam entrar o prisioneiro que nós tomaremos conta dele a partir daqui – disse o homem num tom frio que preocupou Miguel, desconfiado das palavras e antevendo que afinal iria ter mais problemas do que tinha considerado.

– Com todo o respeito – disse o inspetor –, eu tenho ordens para acompanhar o prisioneiro e entregá-lo ao doutor Fernando Sousa. Tenho também aqui a mala com os pertences do foragido para ser processada.

– Aguarde um momento – respondeu o guarda, fechando de seguida o janelo.

Sombras de Silêncio #190

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