Sombras de Silêncio #146

Recolheram a amarra e seguiram para montante, inicialmente pelo trabalho braçal do pescador, realizado em seguida por Miguel, empenhado em causar boa impressão. Passaram o dia a pescar com as canas, interrompendo ao meio da tarde para comer um pedaço de pão que o homem trouxera e que dividira com o rapaz. Miguel dedicara pouco tempo da sua vida à pesca, mas acabou por pescar quase tanto como Mãozinhas e juntos encheram um balde de quinze litros. Bogas, barbos, sáveis, enguias e meixão.

Já depois do crepúsculo, a fim de evitarem olhares suspeitosos, Miguel acompanhou o pescador na colocação de redes ao longo das margens do rio em sítios que ele considerava estratégicos. Prosseguiram depois para jusante, indo encalhar a embarcação num canavial próximo de São Martinho do Bispo. O homem disse então a Miguel para procurar um relento de sonhos por ali. Adiantou ainda que regressaria antes do amanhecer para levantarem as redes. Miguel encostou-se a um amieiro e por lá pernoitou, arrepiado pelo frio. Acordou com os pontapés de Mãozinhas, que lhe trazia um pedaço de pão, uma cabeça de sardinha e a letra “A”. Apesar da gripe anunciada, Miguel estava agradado com o cumprimento da promessa e tratou logo de atenuar a fome. Seguiram depois a montante do rio para mais um dia de pescaria sem sobressaltos. A chegada de Miguel revelou-se um bom augúrio para o pescador, que voltou nesse dia com bastante peixe para a mulher e as filhas irem vender no mercado da cidade.

À medida que as mãos iam ficando gretadas e a pele ganhava uma tonalidade mais escura, Miguel foi-se habituando à rotina dos dias. O homem continuou a trazer pão e expetativas e as noites tornaram-se mais amenas. Contudo, o amanhecer do quinto dia quebrou a rotina. Às ofertas e às letras escolhidas aleatoriamente, mas que Miguel levava muito a sério, seguiu-se um festival de acusações, ameaças, murraças e pontapés que deixaram Miguel com hematomas e cicatrizes por vários dias. Sem o saber, alguns acontecimentos da tarde do dia anterior iriam desencadear tamanha violência, quando Miguel aproveitou um interregno no serviço para ir falar com outros pescadores a fim de saber qual era o nome do seu benfeitor. Porém, acabou por não descobrir mais do que já conhecia: a alcunha. Ao notar alguns olhares indiscretos, Mãozinhas aproximou-se deles, mas apenas os apanhou a falar da mudança do tempo. Depois, antes do amanhecer, quando foram para recolher as redes foram surpreendidos pela sua ausência. Todas tinham desaparecido.

Sombras de Silêncio #146

Comentários