Mãozinhas desconfiou que o rapaz teria confidenciado o paradeiro das redes aos outros pescadores no dia anterior, sendo lesto nas acusações e ameaças. Dentro do barco, a jusante da violência, Miguel foi-se afastando de Mãozinhas, que ia erguendo a voz em raiva e baloiçando de forma nervosa os punhos. Miguel confessou então a verdade à proa de um destino amedrontado. Porém, Mãozinhas já tinha definido sentença e, entre os vitupérios, começou a bater-lhe. Miguel defendia-se como podia, protegendo a cara com os braços e não esgrimindo qualquer resposta perante um homem maior que ele e cuja raiva e incompreensão o tornavam praticamente inexpugnável. Quando se cansou das murraças, Mãozinhas deu dois passos atrás, pegou num dos remos e atirou-lhe mais algumas remadas. Terminou alguns minutos depois, salientando que caso não fosse tão boa pessoa atirá-lo-ia borda fora sem qualquer ressentimento. Encostou então à margem do rio e da violência, prometendo que se o voltasse a ver não seria tão simpático.
Miguel, dorido e escoriado, mal sentiu o barco a embater na margem saltou de imediato como se fosse uma castanha a estoirar de calor. Desatou então a correr, olhando com frequência para trás e escutando o riso lancinante de Mãozinhas. Desorientado, Miguel acabou por tropeçar e cair. Por uma confluência feliz de acasos não embateu com a cabeça numa pedra que se erguia à sua frente. Ao sentir o riso do malfeitor a afastar-se, Miguel rolou o corpo exausto e deixou-se ficar inerte. Com os olhos postos no céu azul, rogou a Nossa Senhora que o ajudasse a encontrar um caminho menos doloroso para a sua vida. Lembrou-se também da mãe, entregue a uma vida de pequenas misérias.
Miguel pensou em voltar para casa, mas ergueu-se logo de seguida contra essa vontade, disposto a vingar sozinho contra a fome e qualquer outra contrariedade. Enxaguou o sangue das feridas e caminhou até encontrar a marginal, seguindo o único trilho errante que conhecia. Subiu o tempo perante o olhar desconfiado das pessoas que ia encontrando. Chegou à Sé Velha e quis subir a escadaria, mas o olhar dispersivo de um guarda à porta do edifício esvaziou-lhe a vontade. Indeciso, sentou-se. Momentos depois notou que o homem tinha desaparecido e arriscou entrar no edifício, desejoso por uma oração e muitos pedidos. Espreitou pela porta entreaberta, mas surgiu de imediato o mesmo homem, cerrando a entrada. Pelos intervalos da gaguez disse-lhe que aquele não era local para vagabundos e que deveria primeiro cuidar do corpo para que Deus considerasse tratar-lhe da alma. Miguel ainda pensou em mendigar a entrada, salientando-lhe todos os vitupérios que passara para ali chegar, mas o olhar incompreensivo do guarda retraiu-o.