Sombras de Silêncio #12

A dona Maria ergueu o corpo, pressionou os rins e libertou um queixume, arreliada pelas agruras da velhice. Recordou depois:

– O Quarta-Feira! Lembram-se dele?

– Mas por quê é que ele se chamava Quarta-Feira? – inquietou-se Tiago.

– Eu sei, eu sei! Porque o conheceram numa quarta-feira! – adiantou-se Hugo.

– Nada disso. A esse faltava-lhe uma quarta-feira! – esclareceu a dona Maria.

– Porquê? – perguntaram, em uníssono, os irmãos.

– Vocês já aprenderam, ou ainda vão aprender, que os bebés demoram nove meses a nascer. Porém, aquilo que não vos ensinam é que Deus demora uma semana para nos criar. Por vezes, pela Sua vontade ou por alguma razão misteriosa, alguns nascem com menos um dia e depois ficam maluquinhos. A esse faltava-lhe uma quarta-feira.

– E por quê Quarta-Feira, e não… Domingo? – retorquiu Tiago.

– Porque sim! Não questiones a vontade de Deus! – concluiu a avó.

– Lembro-me bem dele. Já foi há muitos anos. Apareceu aí um dia… mas como é que ele se chamava… bem vestido, que se dizia professor. Já sei! Era um tal de Alves. Lembro-me muito bem dele – esclareceu Mariana.

Miguel estancou de imediato e soergueu a atenção. Aquele nome soou-lhe estranhamente conhecido, de um passado em que a sua vida se resumia a quatro paredes. Não fez, contudo, qualquer comentário e quis acreditar que seria uma coincidência.

– Era esse mesmo! Chamava-se Alves e dizia-se professor de… História. Chegou ao convento a dizer que vinha da Universidade de Coimbra para fazer um estudo. Eu vi logo qual era o estudo dele! Mas enfim, lá o deixámos ficar e ele dormia ali – apontou para uma janela do mosteiro – com os enguiços enfiados na palha. Trazia um caderno e começou por fazer desenhos. Depois pôs-se a fazer perguntas sobre tudo e mais alguma coisa, apontando o diabo que a gente dizia. A seguir vieram as perguntas sobre um tesouro que estava aqui escondido. Oh, alma gananciosa! Eu lá lhe fui dizendo que, realmente, os antigos falavam de um tesouro qualquer, mas que nunca ninguém tinha visto nada. Parece que ainda o estou a ver, com os olhos arregalados a andar de um lado para o outro, à espera de encontrar qualquer coisa. Depois veio o pior: não é que encasquetou na moleirinha que nós lhe estávamos a esconder alguma coisa e passou a ameaçar-nos com isto e com aquilo… oh, meu menino, deviam de o ver fugir pela serra acima, até faiscava lume. Esteve cá uma semana. O meu Jaquim, que Deus o tenha, também lhe disse das boas! Foi-se embora, mas, cerca de um mês depois voltou com uma cantiga diferente. Dizia-se guarda, à procura de um comunista que tinha fugido de uma cadeia. Não sei como ele fez, mas a verdade é que vinha fardado. Olhem… se os tolos fossem cachos o vinho nunca acabaria!

Sombras de Silêncio #12

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