Já as nuvens se desfaziam em mil gotas quando Miguel acordou na manhã seguinte, sobressaltado por um mais um sonho hostil. A chuva batia rudemente na janela do seu quarto, fomentando-lhe a vontade de um descanso mais prolongado. Porém, acabou por se levantar logo de seguida e foi lavar a cara na água que descia do telhado, num fio ininterrupto de claridade e frescura. Apressado, desceu as escadas e foi ordenhar as ovelhas, entregando posteriormente o leite na casa dos governantes.
Luís saiu pouco tempo depois no seu Citroën 2CV em direção à vila. Após ter concluído outros afazeres, foi ao relojoeiro, numa rua paralela ao edifício da Câmara Municipal. Tratava-se de uma casa de fachada antiga, cunhada num tempo já obliterado. Um rapaz de olhar estrábico recebeu-o com solicitude e dispôs-se a ajudá-lo. Depois de uma tentativa frustrada de conserto, levou o relógio ao seu avô, que estava numa sala contígua. Lá dentro, um senhor muito magro e de idade avançada pegou-lhe e abriu-o, despoletando sucessivamente a curiosidade e a desconfiança. A tampa interior continha um símbolo incrustado, semelhante à letra «A». O homem passou os quinze minutos seguintes em busca de uma suspeita, que acabou por encontrar numa gaveta emperrada da memória.
– Diabos me levem! Não é possível! – exclamou o relojoeiro.
Foi com grande expetativa que abriu a segunda tampa do relógio, mas apenas encontrou a maquinaria habitual. Identificou depois que uma das rodas da engrenagem se estragara. Apesar de ter várias peças iguais na loja, saiu do seu laboratório e alertou o cliente para a impossibilidade de compor o relógio ainda no próprio dia.
– E é cara? – interrompeu Luís.
– Não! Coisa de poucos tostões – clarificou o relojoeiro, com os óculos de várias lentes ligeiramente descaídos sobre o nariz.
– Então faça lá o que tem a fazer que… quando é que isso vai estar pronto?
– Uma semana deve chegar.
O relojoeiro mandou que o neto escrevinhasse a prova da entrega e seguiu para o seu laboratório. Sentou-se e ficou por largos momentos a observar o símbolo no relógio. Recostou-se depois na cadeira e foi recordando vislumbres de conversas e murmúrios antigos entre relojoeiros sobre um interesse inusitado num relógio de bolso Cortébert com o símbolo incrustado da maçonaria portuguesa.