Sombras de Silêncio #302

Girolme sabia que o país estava em guerra. Acompanhava as notícias na telefonia, mas desconhecia os locais e as circunstâncias envolvidas.

– Como?! – inquietou-se Bernardo, continuando depois num tom mais calmo e quase professoral: – Eu digo-lhe como: por Deus, hoje os militares vão derrubar este governo e acabarão com a guerra, chegando a um acordo qualquer sobre a transição dos povos para a autonomia e a soberania. Mais cedo ou mais tarde os povos terão de ficar com aquilo que lhes é de direito. Já o vimos em quase todo o lado e já se contam pelos dedos de uma mão os países que ainda mantêm colónias em África. Esse tempo já lá vai. É o melhor para todos e hoje é um bom dia para a mudança.

O discurso pontualmente vago confundiu Girolme, que não se atreveu a criticá-lo, notando apenas com satisfação a referência divina.

– Liberdade para todos! – explodiu um rapaz que seguia atrás deles.

– Hoje é dia de Portugal!

– Libertem os presos!

A multidão aumentava a cada cruzamento da história. As pessoas deixavam a salvaguarda das janelas e o lavor dos ofícios para virem para a rua, afastando os medos individuais com uma coragem coletiva sem precedentes.

– Mas diga-me uma coisa, nós precisávamos mesmo disto? – insistiu Girolme, ao passarem ao lado do parque de Monsanto.

– Se precisávamos disto?! – replicou Bernardo, indignado, recuperando depois a calma enquanto acertava o fôlego. – Mas é claro que precisávamos; só você para perguntar isso!

– Eu sei… eu sou apenas um porteiro; por mim ‘tá tudo bem… quer dizer… às vezes sinto-me um bocado sozinho. Mas olhe que eu já ‘tive bem pior – tentou compor Girolme, culminando com um sorriso inocente.

– Pois, para você não estava muito mal. Vive bem guardado no seu apartamento de pides e nem imagina o que se passa cá fora. É o seguinte: o doutor António Salazar, esse…

– Sim, sim… sei quem é – interrompeu Girolme, num tom de satisfação vitoriosa –, você também o conhecia? Grande homem, uma joia de pessoa!

– Era melhor que não nunca tivesse conhecido, mas a vida pouco se importa das vontades de cada um – respondeu Bernardo, julgando que o amigo estava a ser irónico.

Sombras de Silêncio #302

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