Apesar de tudo o que abdicara, Girolme aprendera a viver na cidade e afeiçoara-se à estabilidade. Desde que Bernardo se dispersou nas brumas que os dias corriam vazios e rotineiros. Contudo, o estômago continuava saciado e o corpo liberto de qualquer reparo violento. Mirou depois as mãos escanzeladas, com os ossos que pareciam querer rasgar a carne com um temperamento indomável. Voltou-as e ficou por algum tempo a seguir as linhas, como se tentasse perceber onde desembocaria a sua vida. Desejou então que a razão de Bernardo se misturasse com o desconcerto de Bilinho, no sentido de o ajudar tomar decisões.
Girolme virou-se num rasgo de impaciência. Passou pela sala e apanhou a carteira, saindo de seguida do apartamento com o pífaro na mão. Desceu as escadas e chegou ao átrio. Assomou-se depois à porta e saiu. Na rua, as pessoas seguiam em expetativas para a Baixa, trocando comentários de esperança para que o proclamado Movimento das Forças Armadas triunfasse e o país mudasse de rumo. Naquele momento, no meio da migração, alguém lembrou aos transeuntes que aquele prédio era habitação para muitos agentes da PIDE. Criou-se de imediato um pequeno grupo de dissidentes que começou a erguer palavras de ordem, pugnando pela liberdade e maldizendo todos quantos ainda estavam do outro lado. Girolme parou a meio das escadas, sem saber o que fazer. Começou depois a recuar, pé ante pé, acabando por tropeçar e cair na escadaria, o que fez soerguer as vozes na multidão:
– Estão todos tão podres que já não se aguentam nas canetas! Liberdade! Liberdade!
– Hoje é que vocês vão aprender com quantas varas se faz uma canasta, seus patifes!
– Canalhas!
– Olho por olho!
Enquanto escutava os impropérios, Girolme levantou-se e aproximou-se da porta, acabando por entrar no prédio. Pensou que lá estaria a salvo de qualquer incidente. Porém, o grupo ia crescendo à mesma proporção que usava de acusações e insultos gratuitos. Ao invés de subir a escadaria e refugiar-se em casa, Girolme permaneceu do outro lado do espelho. Não se desviou das suas funções de porteiro e parecia suspenso pela vontade dos queixosos, como se o simples facto de eles terem algo para lhe dizer, o obrigava, por inerência dogmática, a escutá-los e a aceitar as ofensas.
– Ainda aí está? Ande cá p’ra fora se tem coragem? – gritou-lhe um popular.