Sombras de Silêncio #68

Os olhos de Miguel brilharam, admirado com aquele objeto estranho que fazia um barulho invulgar. Encostou-o de seguida ao ouvido e escutou o tilintar do tempo durante alguns momentos, maravilhado com a descoberta. Pediu depois ao pai que se aproximasse e encostou-lhe o relógio ao ouvido, convicto de que estava a desvendar o mundo.

Tique-taque-tique-taque – disse o pai, simulando estranheza e admiração.

Miguel viu a sua nova aquisição desaparecer logo de seguida. Iniciou então numa choradeira desenfreada, clamando pelo arbítrio da mãe.

– Papá! – apontou Miguel, à chegada da mãe.

– Ele quer ficar com este relógio, mas ainda o pode estragar – esclareceu Carlos .

– Deus levou-me o marido e deixou-me com dois filhos para criar!

– Ó mulher cala-te! – respondeu Carlos, num tom grave, agastado com o comentário.

Joana estremeceu com a rispidez do marido e ficou sem reação, olhando-o de soslaio. Miguel interrompeu a sinfonia, notando a mudança de atitude dos pais. Depois, por ter deixado de ser o centro das atenções, voltou a rasgar o silêncio com um choro espalhafatoso.

– Desculpa, eu falei sem intenção – cedeu Joana, abdicando ainda de questionar o marido sobre a origem daquele relógio.

– Deixa lá, não foi por maldade – concedeu Carlos, chegando-se aos dois.

Miguel, ao ver o pai aproximar-se, interrompeu a choradeira, expectante.

– Toma filhinho, mas leva-o com cuidado! – condescendeu Carlos, prendendo o relógio numa presilha das calças do petiz.

Miguel não percebeu as palavras, mas reconheceu a dignidade do pai em admitir a justiça, recebendo de bom grado o relógio. Carlos passou a mão pelo rosto do filho, enxugando-lhe as lágrimas e beijou a testa de Joana. Saíram logo depois de casa para o passeio. Ao chegarem à rua encontraram dois senhores corpulentos, bastante elegantes, que vestiam um fato idêntico e usavam um chapéu de coco igual. Carlos julgou até que seriam gémeos.

– O senhor tem a bondade de me dizer as horas? O meu deixou de funcionar – pediu um deles, mostrando o seu relógio de bolso.

Carlos retirou o seu relógio do bolso e respondeu, mostrando-o. Atrás deles, Joana, com o filho ao colo, admirava de esguelha as figuras esbeltas, concluindo que precisava de convencer o marido a comprar novos trajes domingueiros. Miguel estava entretido a passar o seu relógio de mão para mão, por baixo do xaile azul da mãe. Os dois homens agradeceram, fazendo uma ligeira vénia, e seguiram o seu caminho.

Sombras de Silêncio #68

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