Sombras de Silêncio #69

Os Fernandes acabaram por prosseguir para Belém e foram revisitar o Mosteiro dos Jerónimos, segundo a vontade de Carlos, com o desejo renascido de admirar a sua arquitetura manuelina, mesclando ainda o seu interesse recente por mosteiros. Antes de anoitecer, regressaram a casa, deambulando pelo Rossio e divagando o olhar em esperança pelo horizonte.

Ao chegarem, subiram a escadaria e pasmaram ao ver a porta entreaberta. Carlos chegou-se à frente e cerrou os punhos. Expectante, averiguou se havia alguém em casa, mas apenas encontrou uma balbúrdia de proporções medievais. No corredor, as jarras estavam multiplicadas em cacos e as flores serviam de tapete, como se fosse dia de visita pascal; os quadros pitorescos tinham a tela rasgada e o caixilho partido. Na cozinha, a loiça estava estilhaçada a um canto e todos os locais de arrumação estavam revolvidos. Nos quartos, os armários e as cómodas tinham sido despojados da roupa, que jazia aos cantos, e algumas gavetas estavam ainda abertas, enquanto outras estavam feitas em pedaços; os colchões tinham sido rasgados à navalhada por duas diagonais, sendo que o saco de papel embutido no colchão, que antes guardava as poupanças da família, estava vazio no meio do chão. Carlos pegou-lhe, mas somente detetou o cheiro da revolta. Nem a latrina escapou ao tumulto, havendo urina e dejetos espalhados pelo chão, enquanto o espelho apenas refletia a face perplexa do sargento. Carlos pegou-lhe e delongou-se num olhar indefinido.

– O que é que aconteceu! – exclamou Joana, nas costas do marido, que se assustou e deixou cair o espelho desamparado no chão.

– Eu… não sei – respondeu Carlos.

Estenderam depois os braços entre si e choraram a situação. Carlos abandonou depois os soluços da esposa e baixou-se, colocando as mãos sobre os ombros do filho. Abanou-o com ligeireza e interrogou-o sobre onde estava o relógio. Ainda que Miguel começasse a perceber o significado da palavra, ficou ainda mais assustado do que já estava.

– Sou eu que o tenho. Toma! Não lhe faças isso que ainda lhe dá alguma coisa ruim. Mas que relógio é este? O que é que aconteceu aqui? – disparou Joana.

– Nada – respondeu Carlos, voltando depois ao corredor para esmurrar a inocência das paredes.

Sombras de Silêncio #69

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