O homem era um pouco mais alto do que ele e aparentava também ser mais velho, com os cabelos já brancos.
– Nã sei onde é. Eu sou daqui, mas já andei por muito lado – respondeu Girolme, num tom orgulhoso.
– É para o norte, no planalto de Portugal. É uma terra esquecida, onde todos os anos o sincelo desenha o que falta cumprir neste nevoeiro. Vim para Lisboa viver com o meu filho; ele é advogado. Estamos a viver além, no fundo desta rua.
– Eu sou porteiro ali naquele prédio. E você, o que faz? – inquiriu Girolme.
– Agora, nada. Eu era sapateiro; toda a vida trabalhei em sapatos. Já o meu pai o era, tal como o seu pai e por aí adiante. É um serviço que não tem segredos para mim. Você sabia que, no princípio, os sapatos eram todos iguais e não havia distinção entre o direito e o esquerdo?
– Mas, como assim? – perguntou Girolme, com o olhar pregado nos seus sapatos de camurça.
– Os dois eram direitos… quer dizer, nenhum tinha uma curva. Está a ver? – e naquele momento, Bernardo mostrou a curvatura do seu sapato – Antes não era assim, eram direitos e as pessoas andavam direitas como um fuso. Não era nada como nos dias de hoje, em que andam à roda, sem rumo. Enfiam a cabeça no umbigo e rodam até ao fim do mundo, sem se importarem com os outros. Nem com os pombos!
Girolme não entendeu a referência e sorriu. Bernardo perguntou-lhe depois se conhecia a origem da medida dos sapatos. Girolme não sabia; redescobrira apenas recentemente que o tamanho dos pés variava de pessoa para pessoa. Confessou também que apenas sabia ler letras, mas não palavras; percebia ainda menos de números. Girolme ficou muito surpreendido quando descobriu que os números do calçado tinham origem em grãos de cevada. A conversa prolongou-se depois sobre outros aspetos do dia-a-dia. Bernardo ia fazendo algumas perguntas sobre a vida no prédio, interessado em conhecer os hábitos de quem lá morava, e Girolme acabou por referir os problemas que tinha na distribuição do correio. Após alguns momentos de introspeção, Bernardo respondeu-lhe que ele deveria fazer um esquema.