Miguel estava encostado à parede e desacreditou a verosimilhança do momento. A memória inundou-o então com muitas imagens da infância. Recordou o momento em que o pai lhe ensinou aquele verso que ele decorou como se fosse o legado intemporal da família. Sorriu por alguns instantes, perdendo-se do presente. Estranhou depois que o guarda também conhecesse os dois primeiros versos da canção, que ele julgava ser exclusiva da família. Desconfiou por fim que ele tivesse conhecido o seu pai.
– Como é que você sabe essa cantiga? – perguntou Miguel, preocupado e espantado.
O guarda parou e olhou-o demoradamente, desconhecendo o sentido da questão. Ficou depois agradado por estar no bom caminho para resolver o mistério. Durante as suas buscas pelos pertences dos presidiários tinha encontrado aquele relógio num dos cacifos. Ao abrir a tampa exterior ficou curioso com o símbolo, que descobriu mais tarde ser da maçonaria. Se não fosse por tal descoberta, a curiosidade deveria terminar por ali. Abriu depois a tampa interior e encontrou o papel rasgado que Carlos lá colocara quarenta anos antes.
– Cantiga? E como continua a cantiga?
Miguel descobriu então que deveria ter mais cuidado com o que dizia. Lembrou-se depois dos avisos do pai para que jamais a revelasse. Fazia-o não por julgar que seria um meio para encontrar algo valioso, mas por encerrar uma preciosidade familiar que urgia preservar. Encolheu então os braços e adiantou que não sabia. Todavia, a resposta não agradou ao guarda, que cresceu de forma repentina. Miguel sentou-se no chão, encostado à parede, resguardando-se como podia.
– Achas que eu acredito em ti, meu… comunista. Ou me dizes o que sabes ou juro por Deus que dou cabo de ti! – ameaçou o guarda.
A conversa descambara, ameaçando irromper em violência sobre Miguel, que apenas sorriu e soergueu os ombros.
– Diz-me onde dão um mosteiro? – gritou-lhe o guarda.
Miguel amedrontou-se e permaneceu em silêncio, fechado sobre a memória do pai. Foi então que o guarda Alves, como se tivesse sido atingido pela clarividência da sonoridade, notando o desacerto frásico, criou a sua suspeita:
– Dão? É o rio Dão? É um mosteiro que fica perto do rio Dão?