O inspetor Fernando ficou alguns momentos a olhar para ele, voltando-se depois para o quadro, desacreditando a evidência de que aquele insubordinado, perante acusações graves, para além de não adiantar qualquer nome, ainda tinha o descaramento de responder com escárnio. Perante a ameaça de mais pancada, Miguel insistiu na sua história e esteve mesmo para adiantar que apenas voltaria a falar quando o seu amigo chegasse.
– Mas que raio de comunista é você?
– Eu sou dos maiores comunistas que existem – respondeu Miguel, absorto na vontade em não deslindar o embuste que havia erigido para livrar a sua princesinha dos guardas.
– Ó senhor guarda, mostre por favor ao meliante o quanto nos aborrece a sua atitude.
Foi com um brilhozinho maléfico nos olhos que o guarda de pernas arqueadas largou sorrateiramente um murro na cabeça de Miguel, que o deixou dorido e zoado. De um momento para o outro, e sem que compreendesse as razões subjacentes, Miguel viu-se de novo alvo de pancada como se fosse um vil criminoso. Enquanto, ainda atarantado, tentava deslindar outras possíveis ameaças, à sua frente o inspetor puxou para si a mala, abriu-a e retirou de lá um molho de papéis que colocou sobre a mesa, passando então os olhos na diagonal pelos textos escritos por Tiago Silva para as suas palestras.
– «Os patrões de um estado capitalista apenas servem para sugar os tostões aos trabalhadores. Apenas através de uma revolução profunda podemos ter uma verdadeira pátria social e protetora de quem trabalha, nem que seja pela lei das armas. Isto só se endireita com uma sangria das antigas. Os guardas e inspetores andam por aí a intimidar e a controlar as pessoas…». Diga-me uma coisa, alguma vez o oprimi? – inquiriu o inspetor.
Miguel soergueu o rosto, lenta e febrilmente, olhando-o por um instante e recuando de seguida. Desconhecia o significado da palavra e optou por não arriscar uma resposta objetiva.
– Mas foi você que escreveu isto, ou não? – continuou o inspetor, enrubescido.
– Sim, fui eu. Sabe, se calhar nom ‘tava bom da cabeça nesse dia – confirmou Miguel.
– Você não vale cinco segundos do meu dia. Sargento Costa, faça o favor de levar o dissidente para a sala de processamento que eu já lhe vou fazer a folha. Agora vai ter muito tempo para apurar o juízo!