Com a ajuda do outro guarda, Miguel levantou-se da dor e sentou-se no medo, entre lágrimas de silêncio.
– Deixa-te de brincadeiras! Nós sabemos o que tens andado a fazer! Temos-te acompanhado nos teus comícios. Eras um diabo esquivo, mas conseguimos deitar-te a mão. Pensavas mesmo que conseguirias escapar por muito mais tempo? Há muito que sabíamos que a besta do Abrantes Fonseca tinha um protegido. Deixa-me que te diga: já tratámos do teu chefe e tu também vais ter o que mereces. Confessa quem és?
Miguel estava confuso com a pergunta, pois já se tinha apresentado e não sabia que mais dizer. Temeu também a obtusidade do comandante, que não compreendia, ou não queria acreditar, que ele era amigo do doutor António. Ainda assim, decidiu insistir:
– Pois, ‘tá bem… sou eu, mas por favor vá chamar o doutor António. Vai ver que…
– Já sei – interrompeu o comandante –, vocês são amigos. Muito bem, por mim o assunto está arrumado. Ponham-no na cela. Pode ser que aprenda que não adianta fazer-se de parvo para os serviços. A Polícia de Vigilância e Defesa do Estado vai tratar de ti. Descansa bem porque amanhã vais ter uma viagem longa!
Logo que o comandante saiu da sala, o guarda magricelas aproximou-se dele e levantou-o, puxando-o para um corredor apertado e escuro. Entraram depois na sala onde estavam três celas, cada uma com dois beliches ocupados. O guarda abriu uma das celas e mandou-o entrar. Miguel assim fez, sentando-se contra a parede. Quando via passar algum guarda pelo corredor perguntava-lhe se o doutor António. Porém, as gargalhadas e as respostas ríspidas convenceram-no a desistir. Durante o resto da noite, Miguel não conseguiu adormecer, preocupado pela teimosia dos guardas que não acreditavam nele e rogando a Nossa Senhora que o protegesse.
Pela manhã, o guarda magricelas voltou. Mandou-o sair da cela e levou-o para um carro negro que estava estacionado à porta da esquadra. Desconfiado pela ausência do amigo e sem saber o que não poderia fazer, ciente de que os guardas responderiam com o bastão a qualquer indecisão ou vontade distinta, Miguel pôs um pé no estribo da porta traseira e temeu que se puxasse o outro perderia o rasto da sua princesinha, deixando-se ficar assim por um momento. Perguntou depois:
– P’ra donde vamos?
– Não sabes? Vamos ter com o doutor António Salazar para confirmar a tua história – disse o guarda, rindo-se para os colegas.
Apreensivo, Miguel esperava que o incómodo não se prolongasse para lá do meio-dia, a fim voltar para os braços de Ritinha. Naquele momento, o Circus Caricatus estava a passar por Alquerubim, mas parou apenas numa vida mais adiante.