Por debaixo das personagens que interpretavam, os quatro eram uma família como tantas outras: semelhantes nas alegrias, distintas nas tristezas. O pai, Saraiva, já ultrapassara o meio século de vivências e era o argumentista das suas vidas. De baixa estatura, era obeso e tinha um bigode claro, enrolado sobre as maçãs avermelhadas do rosto; o cabelo loiro começava a escassear no topo da cabeça, caindo desgarradamente sobre o pescoço; a personagem abnegada e altruísta que encarnava contrastava com a forma firme e autoritária com que guiava os destinos do Circus Caricatus e da família.
Filho ilegítimo, Saraiva foi abandonado às portas do Convento de Arouca logo após o nascimento. Contudo, teve a sorte de encontrar refúgio numa família que insistiu em prolongar os serviços do mosteiro. Por lá se manteve até fugir por se recusar a seguir o seminário, em vésperas do primeiro Natal do século. Foi enxovalhado e expulso de muitos sítios, mesmo nos mais remotos. Errando ao sabor da vontade, acabou por encontrar uma alma caridosa no coração da serra de São Macário. Passava as noites na gruta do santo e durante o dia descia oculto até à Pena para se encontrar com uma pastora que lhe levava comida.
Ana era uma rapariga muito mais alta do que Saraiva, de cabelo alourado e pernas prolongadas. Nascera com um tumor no pescoço que lhe foi deformando a esperança. Cresceu longe dos sorrisos e do sonho de encontrar um marido. No primeiro encontro fortuito entre os dois, e depois de um primeiro momento de tensão, deixaram-se seduzir pelos males alheios e durante um mês foram mantendo encontros diários. Ele acabou por convencê-la a fugir e celebraram a união para a vida na ermida do santo. Desceram depois até às aldeias limítrofes e tornaram-se saltimbancos. Pediram emprestado aqui, roubaram além e compraram acolá. Com o que foram amealhando, decidiram abraçar em definitivo a vida errante, encenando os infortúnios a que tinham sido sujeitos, numa história que foi sofrendo alterações à medida que outros intervenientes foram chegando.