Sombras de Silêncio #124

Os três partiram na madrugada do dia 11 e chegaram à Cova da Iria na manhã do dia 13 de maio. Ali se juntaram milhares de pessoas, multiplicando expetativas e sonhos a concretizar, à espera que um nevoeiro mágico envolvesse as suas vidas e promovesse a vinda de uma solução para todos os problemas. Também Miguel incorporou o espírito do peregrino e dirigiu preces aos céus, no caminho e no lugar das aparições. Reconheceu ainda que o lugar já pertencia à sua memória, por ali ter andado perdido durante algum tempo aquando da viagem que fez com o pai. Considerou que era uma curiosidade do destino e apenas lamentava não ter sido ele próprio agraciado com o momento divino. Surgiram depois reminiscências, de início vagas e incertas, que o tempo apurou e tornou concretas e efetivas, de uma senhora que o ajudara num momento tormentoso. Questionou então os céus sobre o que lhe teria acontecido. Procurou-a, em vão, pelos rostos carentes e penitentes da multidão, à medida que lhe desejava todos os benefícios do mundo.

Nem a arte dos homens nem o dom de Deus puderam livrar Manuel do fim anunciado. Nos seus últimos dias perdeu a consciência do mundo, não distinguindo o filho de uma abóbora. As palavras abandonaram-no, vincando a inefabilidade do momento. Morreu no dia 10 de julho, deitado no seu quarto. Miguel estava ao seu lado. No último instante, Manuel rodou a cabeça e encarou o neto. Direcionou depois o olhar para o teto e engoliu uma última lufada de ar. Miguel ficou estarrecido pelo momento e cinzelou-o na sua consciência. Os olhos encovados e lacrimosos refletiram-lhe a vulnerabilidade do corpo humano, facilmente vergado pela obtusidade da vida. Fixou-lhe o último movimento no pescoço para engolir o derradeiro relance de vida. Depois, apenas o fim.

«Todos temos o destino traçado», referiam alguns habitantes da aldeia à família enlutada durante o funeral, salientando as boas perspetivas de vida que ele lhes tinha legado. No momento de entregar o corpo à terra, Miguel percebeu a morte de uma forma mais tangível e andou deprimido durante algumas semanas. Quanto a Manuel, a família tratou de honrar a sua memória, fazendo perdurar os feitos e minimizando os feitios. A despedida, só por si, já é suficientemente amarga.

Sombras de Silêncio #124

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