Sombras de Silêncio #118

Pelas manhãs sem chuva, Miguel atava-lhes uma corda à coleira e levava-as para o pasto, prendendo-as às estacas para que não se atrevessem a ir provar as sementeiras. Como ainda era pequena, Estela não precisava de ficar presa, podendo saltitar no espaço confinado. Antes de anoitecer, Miguel ia buscá-las e levava-as para o casebre. Entre os dois momentos ordenhava-as e entregava o leite à mãe. As cabras, que eram mais sisudas e desconfiadas, não gostavam das brincadeiras do rapaz. Porém, Estela estava sempre disposta a dar largas ao seu entusiasmo e vivacidade.

Ao fim de algum tempo, Miguel conseguiu ensinar-lhe um movimento que ambos repetiam sempre que se encontravam. Ele colocava-se numa posição de forcado, enfrentando os olhos do animal e erguendo os dois braços para o ar, simulando uma pega. A ovelha seguia então na sua direção e parava a cerca de dois metros de distância, levantando depois as patas da frente e erguendo o seu corpo. Assim se mantinha enquanto ele também estivesse com os braços no ar. Mais tarde, quando Estela ficou com os cornos maiores, mal via o rapaz com os braços no ar, a ovelha encetava numa correria desenfreada e simulava que o ia atacar de frente. Se ele baixasse os braços para se defender, ela insistia num ataque subtil, deixando que Miguel a segurasse pelos cornos. Caso o rapaz não esboçasse defesa alguma, ela parava no último instante e revirava os cornos, espirrando a sua malvadez aparente e ignorando-o.

Miguel deixara em definitivo o estudo das letras e não se importava minimamente com o prejuízo, ganhando gosto pelo cultivo da terra e pelo tratamento dos animais. O cabelo mantinha-se negro como a fuligem, mas era melhor moldado pelas tesouras do avô. No rosto, alguma barba começava a fazer-se notar. Aos quinze anos, o corpo atingira já a estatura que o acompanharia pela vida adulta. Era um pouco mais alto e mais estreito do que o primo, acabando impreterivelmente por perder todas as altercações, sérias ou banais. Com Arnaldo, que era pouco dado a brincadeiras, não arriscava a sua sorte em jogos de arrelias. Sempre que lhe davam a escolher, preferia trabalhar ao lado do avô, escutando as suas histórias de vida, subtilmente pintalgadas e decoradas por alguns traços ficcionais.

Sombras de Silêncio #118

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