Sombras de Silêncio #105

A lua resplandecia numa solidão expectante, tornando visíveis as formas subtis da ribeira de La Lys. À volta, e por largas extensões de terreno, os homens tinham cavado trincheiras entre a ribeira e os alemães. Na terra de ninguém os corpos amontoavam-se em putrefação. Perto de Neuve-Chapelle, entre os soldados da segunda divisão do Corpo Expedicionário Português, entrincheirados na primeira linha de defesa, uma mulher deambulava em desespero à procura do seu soldado perdido. Vestia uma longa saia esbranquiçada, com umas pregas alternadas entre os lírios enfeitados, que aos poucos iam sendo salpicados de sujidade. Com os cabelos prateados, de rosto inocente e aflito, perguntava se alguém conhecia o paradeiro do marido. Inicialmente deitados, os soldados foram-se alvoraçando pela estranha intromissão e começaram a levantar-se. Matizados pelos capotes enlameados, com as espingardas Mauser-Vergueiro coladas às mãos, olhavam com inquietação para a mulher. O desassossego foi-se acentuando até que, entre os bramidos, houve um grito estridente que desvaneceu os restantes:

– Joana! És tu?

Os dois correram então ao desencontro e abraçaram-se numa reinvenção do tempo.

– O que estás aqui a fazer? – perguntou Carlos, passando-lhe os dedos pela cara macia, com o olhar fixo num azul ausente.

– Tinha saudades tuas – respondeu-lhe ela, cerrando o olhar e oferecendo um beijo.

Ao redor, os homens miravam-nos com inveja; muitos redimiram os pensamentos para as mulheres, reais ou imaginárias, que haviam deixado num passado nebuloso.

– A tua carta assustou-me – replicou ela.

– Estou cansado; isto é um inferno, noite e dia. Tenho os pés cheios de feridas. Adormeço com o medo de não acordar. Os alemães aparecerem em todo o lado, até nos sonhos. Estou farto do miserável Figueiredo. Ontem, o meu melhor amigo morreu estraçalhado por uma rajada de metralhadora; os intestinos ficaram espalhados pelo chão. O corpo ficou ao abandono ali na frente, esquecido por Deus. Chamava-se Bruno Correia; queria ir para Lisboa e aprender a arte dos mecânicos dos automóveis. Agora está p’rali a ser comido pelos vermes… pelos vermes!

Carlos deixou cair os braços e o olhar para a terra negra e fria. Inspirou longos goles de melancolia e começou a chorar como uma criança abandonada.

– Meu amor, isto foi a nossa perdição. Vem comigo e deixa tudo para trás – suplicou Joana, colocando-lhe ambas as mãos no rosto e erguendo-o ao seu olhar.

– Eu vou, mas os vermes… por ali não, por Deus.

Sombras de Silêncio #105

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